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Geleia geral: história sem arremate


Em 1980, com o fim da censura no país, no começo do governo de João Batista Figueiredo, começam a ser publicadas em maior quantidade, obras de autores novos. Os filmes, os contos, os romances, as peças de teatro, os depoimentos que abordam os problemas vividos depois de 1964 tornam-se frequentes: Reflexos do Baile, Em Câmera Lenta, Ponto de Partida, Paula, a Guerrilheira, O Crepúsculo do Macho, de Fernando Gabeira, jornalista que volta do exílio e, de tanga de crochê na praia, atreve-se a perguntar: “O que é isso, companheiro?” (título de seu livro que obteve record de venda). A revista masculina Ele & Ela, publica imagens de nu frontal de uma futura e famosa apresentadora de programa infantil da televisão.
O Brasil vive momentos de um processo voltado para a redemocratização do país. Com menos de um ano de governo, Figueiredo baixa o decreto de Anistia e extingue os partidos existentes, dividindo a oposição: surgem os partidos PP, PMDB, PDT, PT, ao lado do partido do governo, o PDS. A censura torna-se bastante liberal; filmes, livros, peças, letras de música proibidas há vários anos são liberados. Luta-se por uma Assembleia Constituinte. Ocorrem a greve de operários, professores e médicos. Ao mesmo tempo, notam-se momentos de retrocesso: um atentado à bomba contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o sequestro do advogado Dalmo Dallari e a destituição da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em São Paulo.
No fundo do túnel começa a surgir uma luz: essa manifestação de insatisfação popular contra a política econômica anterior – que fez aumentar assustadoramente os desníveis sociais no país – força o governo a uma mudança, no sentido de uma “distensão” e de uma política econômica que atenue as diferenças sociais. O pesado saldo da gestão anterior, houve o empobrecimento sério, sendo os grandes valores ainda os mesmos dos anos 60; economicamente, temos inflação galopante, arrocho salarial, proletarização da classe média, pauperização da classe proletária, concentração da renda a níveis assustadores e violência. Assiste-se na década de 80 a uma violência econômica que gerará, num trágico encadeamento, a violência social, a que estamos nos acostumando a assistir: assaltos, roubos, crimes e marginalização do menor.
Apesar do sedimentado ranço ditatorial de alguns setores da sociedade manter um regime de opressão, um grupo restrito de estudantes e artistas procura ainda burlar a censura com a alegoria, isto é, abordando o real com uma linguagem figurada e metafórica. Mas há o reverso da medalha: além dessas manifestações mais lúcidas e críticas, vigora também nessa época uma produção artística que oscila entre o escapismo e o nacionalismo ufanista. Surgem então, lado a lado, a pornochanchada e os filmes históricos, além de slogans como “Brasil: Ame-o ou deixe-o”, que se prolongam em músicas de exaltação patriótica (“Eu te amo meu Brasil/ Eu te amo/ Meu coração é verde amarelo branco azul-anil...” – Eu Te Amo, Meu Brasil, de Don e Ravel). Despontam ao lado de modas internacionais produzidas pela indústria, como as “discotheques”, numa convivência harmoniosa, mas típica do sistema cultural de que somos contemporâneos.
Dentro do clima de euforia e de empolgação da abertura política, de outro extremo, as comunidades católicas insistem no programa sufocante para atrair adolescentes e adultos impondo as regras morais rígidas, além de controlar suas ações na família e na sociedade. Como parte da estratégia, as instituições religiosas conseguem espaço para publicação de colunas semanais nos jornais e a produção de notas e entrevistas no sistema de radiodifusão, para persuadir a grande faixa de público menos informado, além de mente fraca, bombardeando de imagens surrealistas, do Deus punitivo e vingativo, que castiga junto às visões monstruosas e trágicas do Apocalipse, dentre outras passagens, da Bíblia. A ronda da Polícia Militar era feita num Volkswagen, nas cores preto e vermelho, dia e noite, de preferência na esquina das escolas estaduais dos bairros. Tanto às crianças até os pré-adolescentes se oferecia a Festa da Criança e da Sodinha, anualmente, em 12 de outubro, que iniciou em frente do Terminal Rodoviário, na Avenida Brasil, e prosseguiu nas instalações do Ginásio Municipal de Esportes, na Rua Prudente de Morais, no Jardim Aviação, zona norte. No período de festas, entre Natal e Ano Novo, as famílias ainda juntavam as mesas, no fundo do quintal, sob uma estrutura armada usando lona de caminhão, ligavam o toca-disco ao som de vinil (long play) da harpa paraguaia e a cristandade de Luís Bordón.
 Para ler livros de bolso, revistas e quadrinhos usados, você tinha apenas duas opções: na sorveteria do Luís Carlos, na Avenida Manoel Goulart, e numa banca na feira livre de sábado e domingo, na mesma via. Grande parte eram livros de clássicos das literaturas brasileira e estrangeira, fascículos de coleções, como Bom Apetite, de culinária, e cursos de inglês e francês. Já a biblioteca municipal Dr. Abelardo de Cerqueira César, no palácio Pedro Furquim, na Avenida Washington Luiz, esquina com a Avenida Coronel José Soares Marcondes, tinha um acervo médio e desatualizado. Assim, se quisesse adquirir um lançamento havia que encomendar nas livrarias e papelarias Livrolândia e Imperial, e aguardar no prazo de 30 dias, no mínimo. A produção poética se restringia ao estilo parnasiano, uma estética literária do século 19, contida e formalista, refletindo o profundo apreço pelo soneto, e eram diagramadas demonstrando que estavam preenchendo um espaço que faltava para fechar a página. Na estética representada por Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correa. Em versos que os poetas tratam do amor de maneira descritiva e narrativa. Sem o aprofundamento sentimental, apesar do evidente lirismo. Tendo o rigor formal evidenciado pela rima artificial, sem contar as poucas figuras de linguagem.
O jovem daquela época conseguia uma namorada, com muita persuasão e perseverança, e chegava com ela a um altíssimo grau de excitação, até que se colocava o chamado problema do conhecimento da mulher, com todas as aflições e ansiedades inerentes a essa questão. Mas as garotas eram católicas, apostólicas romanas e tinham o grande problema de pecar contra a castidade, para não incorrer no chamado pecado da carne. Se tirasse a virgindade de uma moça estaria irremediavelmente condenado às trevas eternas. O que podemos argumentar que a sexualidade era uma questão metafísica. Apesar disso, um grupo se safou. Como? Com a prostituta que fazia programa na zona do meretrício, na Vila dos Eucaliptos (popular “Vila Cachaça”) e uma pequena parcela afortunada com a empregada doméstica, bem no esquema de Casa Grande e Senzala. Já os que residiam na área rural eram adeptos da zoofilia, uma prática originária do Paganismo em Roma. Quem explica esse emaranhado que envolve psicologia, práticas sexuais, ética e moral religiosa, refletindo um conflito sério nesta geração, onde a sexualidade, onde a libido transpirava pelo corpo inteiro. Em meio a esta geleia geral brasileira, que os jornais anunciam e a televisão transmite em cores e ao vivo, os artistas encontram em suas produções uma forma de fazer da linguagem um instrumento de suas contundentes visões do mundo.

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