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"Poesia desvirgina a vista casta"

Entrevista











Conheça a arte delirante de Rubens Shirassu Júnior: desde suas influências,

sua reflexão sobre literatura até o resgate do Eu mais esquecido


Alguns escritores consideram a escrita uma prática árdua, outros acham que é um processo natural (gerado da vontade), ainda há alguns que escrevem porque pretendem dizer algo mais. E você, como considera o processo de elaboração da escrita literária?



Há muito entendo que todo processo artístico requer muito mais transpiração que inspiração. Escrever costuma implicar num gesto contra a corrente. Dentro de uma ordem social onde tudo está submetido aos critérios do progresso e da eficiência financeira, a literatura está fora desse objetivo o que a torna secundária, dispensável e, em certos casos de reincidência, passa por irrealista, quando não por francamente anormal. Esta compulsão de escrever, de se exprimir por não caber dentro de mim, por viver em estado de desequilíbrio, como uma forma de exorcizar meus demônios, parafraseando o poeta chinês Han Yu, do século VIII para quem as coisas necessariamente ressoam, sempre que seu equilíbrio se rompe.

O mesmo ocorre com os humanos: falam porque não podem se conter, cantam porque estão emocionados e se lamentam porque sofrem – respostas variadas ao equilíbrio perdido. A escrita acaba sendo um testemunho de nossas imperfeições, mas também a retomada do equilíbrio, num outro nível. Por seu caráter pessoal e solitário ao extremo, o ato de escrever exige necessariamente um mergulho interior e, com isso, implica numa propensão para o resgate do nosso Eu mais esquecido. E realizo essa “utopia” com verdadeira obstinação – contra a corrente tanto do cotidiano encontro motivos um pouco além do caos deste século, das mistificações da míope sociedade de consumo que, com sua obsessão pasteurizadora, veicula e determina ao mundo o que está dentro e fora da moda.



Seguindo a linha de que escrever é uma consequência, quais foram os autores e livros que lhe influenciaram para a carreira de escritor?



A minha genealogia literária apresenta raízes e inclui influências muito díspares na literatura prudentina e região oeste do Estado, formando uma mistura fina que é única por erudição, mas também por transgressão. Começa com o “Poema Sujo” e os ensaios sobre cultura e artes plásticas de Ferreira Gullar. Ainda no final da década de 70, aprofundei-me nos estudos da geleia cultural e filosófica de Jorge Mautner e a contracultura de Luís Carlos Maciel. Esse contato com a reflexão existencialista permanece ao mergulhar na prosa de Clarice Lispector, foi como um imprinting poético-filosófico: marcou para sempre minha visão de mundo, de política e da poesia.

Ao conhecer os poetas metafísicos ingleses, sobretudo William Blake, comecei a aprofundar minha experiência mais direta com o sagrado e a vida interior. O contato com a obra de Nietzsche, um profeta pessimista e decifrador da alma moderna, temperou o espírito e o intelecto de contundências. Mas a fome voraz de novidades descobriu Arthur Rimbaud e Lautréamont, recebendo a influência desses dois poetas visionários, que extrapolam os limites da expressão racional e das escolas literárias. A partir daí, iniciou-se em minha vida o cultivo do rimbaudiano “desregramento de todos os sentidos” para se chegar à poesia. Das vanguardas do começo do século 20, absorvi lições do surrealismo, na vertente francesa de André Breton, Antonin Artaud e René Crevel.

Dos poetas brasileiros, essa genealogia poética agregou as figuras de Murilo Mendes - com seu surrealismo intenso, espontâneo e sensorial, ao contrário dos franceses intelectualizados - e Jorge de Lima, sobretudo aquele barroco, visionário e atormentado de “Invenção de Orfeu”. Os elementos finais da construção poética evidenciam uma substancial ligação com o aspecto mágico.

Uma expressão poética persegue o rastilho da escrita automática, com devidos créditos à Geração Beat, de extração surrealista: recuperar para a poesia os estados primitivos do sonho e da loucura. No caso, talvez fosse mais adequado falar em escrita delirante. Essa prática levou, também, no caso do poeta brasileiro, à utilização do método da livre associação de juízos, a partir da crença na importância poética do inconsciente. Adicionando as ideias de Sigmund Freud, Michel Foucault, Wilhem Reich e Carl Jung.



Além da literatura, você aprecia outro tipo de arte? Quais os compositores, diretores de cinema, pintores, escultores, etc., de sua preferência.



Gosto de boa música, principalmente, Música Popular Brasileira, do Jazz e Blues dos anos 40, e o Rock and Roll até 1990. Da velha guarda do cinema europeu, admiro Pier Paolo Pasolini, Federico Fellini, Luis Buñuel e Ingmar Bergman. E sem esquecer a pintura delirante de Salvador Dali, de Bosch, de Van Gogh e de René Magritte.



Suas leituras são rigorosas? Que tipos de livros prefere ler?



Minha leitura é tão regrada quanto a escrita. Comigo tudo tem tempo e compromisso. Às vezes leio até três livros ao mesmo tempo. Preferencialmente, leio filosofia, sociologia, antropologia, a literatura moderna brasileira e internacional, além de revisitar os beatniks em geral.







Sua prosa e sua poesia explodem em múltiplas imagens no que se refere à forma e ao ritmo. Elas estão próximas dos instantâneos de uma câmera de vídeo no conjunto de sua obra?



Provavelmente, seja porque não consigo fazer cinema e pintura. Assim, tento dar o recado na poesia e na prosa. Às vezes consigo. Ou estarei aderindo à linguagem dos novos meios de comunicação, como os smartphones ou tablets.





Quais as características para você de um bom livro?



Deve prender a atenção a partir do primeiro parágrafo. Precisa antes ter uma boa capa e um bom título criativo e instigante, que desperte a curiosidade do leitor. O escritor precisa ter o domínio do tema e em momento algum deixar a “peteca” cair, a exemplo da previsibilidade das ações na próxima página, entre outros detalhes, ou a história perder o intenso fio condutor. O leitor exige do autor a máxima competência para não descartá-lo.



O que o norteia?



O ser dito racional, e o mistério de sua mente reflete uma caixa de surpresas. A riqueza e a diversidade humanas me fascinam e me deixam perplexo. Ainda assim enfrento o desafio de “criar” um perfil psicológico para cada personagem, principalmente, nos contos. Por isso, injeto ingredientes na expressão corporal e nas atitudes do personagem, num tipo de proveta de laboratório, complementando com doses de fantasia.



Qual a sua opinião sobre o papel da literatura na sociedade?



É um registro do tempo e das coisas, mesmo que a criação literária, de certa forma, mascara a realidade. O escritor (aparentemente) transmuta nos sentidos figurativo ou metafórico, a verdade e a conta de maneira mais honesta, além da forma panorâmica. Diferente do que a política e a mídia tentam impor.

Desde o final do século 20, tem se visto uma crescente atenção especial ao cruzamento e interseção entre as diversas linguagens, bem como ao fomento e discussões pertinentes ao circuito artístico e à comunidade. Essas experiências tornam possível entender a leitura de obras e linguagens diversas, propícias ao diálogo com o grande público. Pela descendência japonesa busco a interface entre arte, literatura e filosofia oriental em proximidade com as artes visuais (pintura em aquarela), além do que, o estudo e a prática do haicai brasileiro representa um convite ao aguçamento da percepção poética e, também, além de religar e os equilíbrios físico-espiritual com a natureza pelas filosofias do Taoísmo e do Zen budismo, uma bela possibilidade de diálogo entre as duas culturas.

Outro traço marcante na obra é o total desmantelamento da versificação métrica, influência modernista que, no meu caso, caotiza-se, na tentativa de transpor para a poética escrita o ritmo sincopado do jazz e a respiração do músico de jazz. Depois, veio a influência do cinema. Trata-se de uma obra pontuada por cortes cinematográficos que remetem ao cinema experimental, com passagens abruptas de espaço, tempo e imagética. O verso livre, desprovido de toda e qualquer regra, será sempre um grito de liberdade neste contexto atual de sufoco, de repressão e retorno ao obscurantismo medieval, a falsa moral mesclada com o espetáculo bárbaro da tragédia do povo bombardeado e induzido ao consumo desenfreado através dos meios de comunicação. Um teatro da vida cruel mantendo espectadores passivos e sonâmbulos.

No geral, tenho uma temática muito diversificada, que parte do urbano e quotidiano, passando pelo erótico e carnal, até atingir o metafísico e o sagrado.

O resultado geral é uma expressão poética fragmentada, que resume exemplarmente as soluções expressivas, as inquietações e encruzilhadas da contemporaneidade. Assim, os escritores da atual geração devem inaugurar traços singulares no contexto poético brasileiro, que fazem de suas obras uma das mais originais e inovadoras dentro da poesia brasileira contemporânea. Uso a referência do corpo e da transgressão, do poeta paulista Roberto Piva, como sempre esteve equidistante das escolas conhecidas, pode-se dizer que ele é sua própria escola. No espelho da literatura, a imagem do escritor de estilo é daquele que reflete, de modo nem sempre aceitável, os paradoxos da contemporaneidade, através dos seus próprios. Por ser incômodo, recebe mais pedras do que reconhecimento dos seus contemporâneos. Para não falar da conspiração do silêncio da qual sua obra tem sido vítima. O silêncio dos professores e dos acadêmicos no descaso, um tipo de violência pelo verso novo contra o comodismo.

No mais, a poesia sempre vai ser uma arte minoritária, como a filosofia, e sem retorno financeiro e nem comprovação de status social. Ela não é criada por gente que apenas a lê – a sua leitura seria um dos pilares! – mas, sim, por pessoas que a vivenciam, por estarem possessos pela poesia e por incorporarem a fala xamânica da poesia! Acredito na poesia que tenha guarnição na vivência, porque a função de um intelectual, de um poeta, que reflete sobre a cultura brasileira, é transmitir conhecimento através de imagens, de alucinação, de loucura, de seu povo.

O poeta desvirgina a visão casta, ele é o sangue que pulsa na ponta dos olhos, causando a explosão das medidas da palavra escrita e concreta. Sem estar condicionado às regras, aos limites do espaço que o cerca. Com coragem, arrebenta o mais instável dos solos literários. Porque escolher ser poeta em nosso País já é, por demais, uma atitude de bravura. Assim como o mar que inunda os olhos, a poesia nos devora à medida que a relemos. Mas não se trata de uma destruição absoluta, pois os olhos devorados estão em processo de se transformar em algo mais amplo. E prazerosamente o poeta vomita o Terceiro Olho de tesão, por enxergar o mesmo mundo com um deleite jamais imaginado. Este Terceiro Olho contém tanto a visão da dor quanto a do prazer.


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