O jornal Tribuna Livre,
de Presidente Venceslau, São Paulo, publicou a matéria “Artigo de Rubens
Shirassu Júnior é citado em tese de doutorado”, na edição 5.108, de 25 de
janeiro de 2020 (último sábado). Você pode encontrar o texto completo na página
4, no item Comunidade e Região, deste diário.
Um livro recortado de
uma tese de doutorado, que Angelina Bulcão Nascimento defendeu na Faculdade de
Comunicação e Cultura da Universidade Federal da Bahia, em 23 de setembro de
2004, intitulada “Entre o Prazer e o Mal-Estar: Prazeres Sensoriais x Sacrifícios
em Nome da Saúde e da Estética Corporal Focalizados pela Revista Veja”. A autora
teve o interesse em articular dois campos de estudo – Comunicação e Psicologia,
despertando também a ideia de pesquisar as formas prazerosas contemporâneas,
com destaque para o prazer de comer, como uma das maneiras de driblar ou
escapar do mal-estar na cultura Além de estar associada à qualidade de vida,
condição de saúde e beleza, a alimentação tem despertado o interesse acadêmico,
resultando em número crescente de publicações sobre os hábitos alimentares e os
rituais a eles relacionados. Presentes nos momentos mais marcantes da vida em
sociedade, estes hábitos e rituais permitem compreender melhor padrões de
culturas e mentalidades como instrumentos de comunicação, metáforas de afeto,
necessidades de pertencer, expressão de identidade.
Na última década do
século XX, a comida abriu portas para novos desejos, profissões, objetos de
consumo, formas de relacionamentos, cerimônias de agregação, obras literárias e
cinematográficas. Tornou-se cada vez mais evidente que, sob o domínio da
linguagem, o comportamento de se alimentar extrapola o âmbito da necessidade e
da nutrição. Tal comportamento me pareceu motivo, a um só tempo, de prazer e de
sofrimento, em uma época em que a supervalorização da aparência física exibe
características religiosas, tornando a obesidade um pecado capital e a dieta
uma forma de expiação.
Na opinião de
Nascimento, as mudanças decorrentes dos novos prazeres e hábitos alimentares
sofrem, não apenas a influência dos meios de comunicação que estimulam o sabor
da novidade, mas da importação de hábitos que geram consequências no estilo de
vida, nos papéis de sexo, de família e profissionais. O prazer de comer e de
beber se desdobra em vários aspectos: a gastronomia, as peculiaridades dos
gourmets, gourmands, glutões e foodies. E também em comportamentos compulsivos
traduzidos no canibalismo, na gula, em suma, nos excessos.
Reportagens sobre
alimentação corpo e saúde, riscos alimentares, contradições da ciência,
estimulando e condenando a comida também são citadas, no decorrer da obra,
evidenciando o papel da mídia nos hábitos e costumes contemporâneos. Os
depoimentos obtidos em suas investigações sugeriam a existência de sintomas
inéditos do mal-estar experimentado pelo homem do século XX: anorexia nervosa,
bulimia, tanorexia (dependência física ao bronzeamento artificial), lipofobia
(fobia de gordura), corporalismo — termo usado por Maffesoli para
designar a preocupação obsessiva com a aparência física, a saúde, a alimentação
e a prática exagerada de exercícios; e da corpolatria — termo que designa as
características de religiosidade, alienantes e narcísicas que adquirem os
excessivos cuidados com o corpo. Alguns desses sintomas revelam um aspecto
mortífero do prazer, capaz de destruir. Observou também que a obsessão pelo
corpo, uma compulsão pós-moderna, tem atingido pessoas de várias gerações na
última década, e cuja apresentação sintomática conjuga prazer e sofrimento,
isto é, aquilo que a psicanálise e outros discursos contemporâneos denominam
“gozo”, e que Sigmund Freud já havia detectado como o mal-estar na civilização.
Essas considerações a
levaram a formular o problema que orientou a referida tese. Instigada a
pesquisar como os meios de comunicação informam e estimulam alternativas para o
corpo obter satisfação, abrindo caminhos para novas experiências sensoriais —
saborear, cheirar, tocar, ouvir, ver, – que resultam em novos relacionamentos e
novas formas de consumo, bem como estratégias para lidar com o mal-estar e o
bem-estar. E também como as proibições, apresentadas e incitadas
permanentemente pela mídia, propiciam conflito entre o prazer e a culpa de
comer. Para melhor aprofundar o assunto, buscou na literatura psicanalítica
alguns conceitos que, articulados com a comida, o corporalismo e a mídia, lhe
ajudaram a compreender melhor alguns de seus aspectos. “Prazer”, “gozo”,
“desejo”, serviram de suporte teórico ao trabalho.
Em seu texto “Mal-estar
na Civilização”, de 1930, Freud tematiza e descreve as dificuldades de o
ser humano ser pulsional por excelência, viver em sociedade. O hiato inexorável
entre os seus desejos e aquilo que ele realmente pode realizar é colocado como
fonte permanente de conflito psíquico. A vida em sociedade implica soluções de
compromisso, adiamentos e transformações de desejos. É sabido que cada época
traz seus próprios modos particulares de driblar esse mal-estar inerente à
civilização.
Considerando que uma
das marcas da contemporaneidade é a influência e importância que a mídia desempenha
em nossas vidas, a escritora decide tomá-la ao mesmo tempo como tema e guia.
Como guia, recorre à sua ajuda para detectar e selecionar algumas das
principais formas que a sociedade atual encontrou para lidar com o mal-estar.
Como tema, analisa o papel algo “esquizofrenizante” que a própria mídia
desempenha ao se constituir, simultaneamente, como gerador ou propiciador de
formas de combate ao mal-estar e fonte, ela mesma, de mal-estar, seja direta ou
indiretamente.
Pela importância do
espaço crescente que a mídia vem a isso dedicando, Nascimento elegeu
determinadas questões relacionadas ao corpo e à comida como centrais de seu
trabalho. Essas questões abrangem desde o corpo como sede dos chamados
“prazeres da boca” até o corpo como sede das preocupações estéticas e com a
saúde.
Tais questões são tão
relevantes quanto complexas, especialmente se levarmos em conta o antagonismo
entre os primeiros e as segundas: a mídia que revela e estimula o consumo das
inúmeras delícias da mesa é a mesma que apavora ao revelar os não menos inúmeros
males que um possível excesso pode causar. Males do corpo e da mente. Pois às
ameaças de doenças cardiovasculares, diabetes e, até mesmo, morte precoce, se
juntam àquelas de rejeição social ou desconforto a quem não possui um “corpo
perfeito”.
“Enfim, é um livro que,
pela originalidade de seu enfoque, pelo cuidado na pesquisa e no tratamento dos
dados, dentro de uma área que, afinal, atinge todos nós, não pode deixar de
despertar grande interesse. E de ensinar a ver aspectos da realidade em que
estamos imersos e, por isso, cegos para eles. É uma leitura proveitosa,
enriquecedora, erudita e, em grande parte — o que parece cada vez mais raro —
despretensiosamente divertida” – conforme escreve João Ubaldo Ribeiro no
prefácio.
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