O historiador Sérgio
Buarque de Holanda, um dos intelectuais mais engajados na tarefa de compreender
o Brasil, seus dilemas e sua identidade. Foi um pensador multidisciplinar muito
antes da polivalência ser valorizada. Além da história, estava à vontade em
domínios como a sociologia, antropologia, psicologia, etnologia e crítica
literária. Ele tinha uma cultura impressionante, quase não cabia na atmosfera
cultural brasileira nas primeiras décadas do século 20.
Ao viajar para a
Europa onde viveu por alguns anos, Sérgio Buarque de Holanda voltou com o
projeto de Raízes do Brasil (1936),
uma resposta àquilo que esperava do Modernismo: compreender o Brasil, acertar o
passo do país com o seu tempo. O livro é um acerto de contas com a ala
conservadora do Modernismo, que emprestou alguns mitos literários para a
formação do Estado Nacional do Integralismo.
Raízes, um diagnóstico do Brasil, aponta os
adversários a combater. Critica a cultura personalista, o sentido da
colonização predatória, o modo de agir das elites, o lugar da literatura - um
mero apêndice à vida bacherelesca e nisso retoma ideias já presentes em textos
fundamentais do movimento modernista, mais engajado estética e politicamente,
como o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropofágico
(1928), de Oswald de Andrade. Estudo sobre a alma brasileira, Raízes fornece os
elementos para uma reflexão acerca da identidade nacional, tema relevante ainda
hoje, num mundo em plena transformação.
No livro, o pensador
vai mais fundo que Gilberto Freyre, que olhava a senzala do ponto de vista da
casa grande. Sérgio Buarque virou isso do avesso, pois, quando falou dos
pobres, dos mamelucos, o fez criticando a oligarquia. Raízes está entre a história e a literatura: é um ensaio literário.
A questão da cordialidade, uma visão da nossa exterioridade, é um conceito
civilizacional que abrange a literatura, a brincadeira, o humor e o ócio. A
noção de homem cordial foi mal interpretada por alguns círculos intelectuais e
provocou polêmica na época. Uma categoria complexa e apresenta uma certa
fluidez, pois na concepção de Sérgio Buarque há um movimento em torno dela, de
adesão e repulsa. A visão de cordialidade como bondade, receptividade ao outro
e leveza nas relações interpessoais configura uma generosidade peculiar. Esses
são os aspectos mais exteriores do conceito, mais “positivos”. O aspecto
central da categoria diz respeito ao diagnóstico da interferência entre as
esferas pública e privada da vida social brasileira. A partir da fraca
distinção entre essas duas instâncias, o historiador analisa as relações
sociais de modo geral.
Na sociedade
brasileira, o Estado funciona como extensão da família, do ambiente doméstico. Os
homens públicos são formados nesta teia de relações, que primam laços pessoais,
sentimentais, clientelísticos. Aqui, cordial não significa afável, mas se
refere ao coração, designando os afetos como mediadores das relações. Essa
sociabilidade afetiva e voluntarista está presente em todas as instâncias da
vida social. A confusão entre público e privado repercute na estabilidade das
instituições, dificulta o fortalecimento da democracia e da cidadania.
Este conceito também
é útil para iluminar as relações sociais no campo cultural, explicando o papel
das academias, a fruição do ócio cultural, além de contribuir nas análises de
fundo da obra de escritores marginalizados, como Lima Barreto e Oswald de
Andrade. Buarque de Holanda via nos artistas que estão fora desse âmbito
paternalista de relações a possibilidade de uma outra literatura.
Essa categoria entrou
na própria visão que ele tinha de sistema literário, que remete mais a
organização de seres histórica e estética do que ao isolacionismo do sistema
literário, caro as certas correntes da crítica, desligando-o de seu contexto.
Além disso, a categoria entra no mérito da crítica literária: o valor de uma
obra não vem da sua recepção, nem dos grupos de amigos do escritor, mas dos
temas. O autor distingue temas originais, fecundos, de temas mais aceitos por
grupos de recepção concebida, que antecipam o sucesso ou garantem a circulação
de um livro.
Comentários
Postar um comentário