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Sexualidade no Brasil: Entre o poder, o pudor e a luxúria




Para compreender a história de nosso país não podemos ignorar a vida sexual de seus habitantes ao longo do tempo. No Brasil, particularmente nas décadas de 1920 e 1930, aflora a importância da dimensão sexual nos discursos históricos e sociológicos de Paulo Prado em “Retrato do Brasil e de Gilberto Freyre em “Casa Grande & Senzala”. Tais autores empreendem uma interpretação metódica da identidade brasileira dentro da realidade tropical. Temos, ao longo da história sexual dos brasileiros, aparentes contradições como a importância da manutenção da virgindade imposta às mulheres e, por outro lado, a extrema liberdade masculina manifestada na frequência aos bordéis e zonas de meretrício. Os reflexos da revolução sexual em finais dos anos 1960, com as comunidades baseadas no “amor livre”, tem seus vestígios nas décadas seguintes no Brasil. País de clima quente, paraíso tropical, Carnaval. As imagens alegres que expressam licenciosidade, sensualidade e extroversão correspondem à realidade ou trata-se de um mito fabricado?
Quando um sociólogo aborda o tema sexualidade, o primeiro mandamento a ser enfatizado é que, enquanto no reino animal irracional as funções sexuais são determinadas fundamentalmente pelo instinto, a sexualidade humana se manifesta através de padrões culturais historicamente determinados, donde sua dinamicidade temporal e diversidade espacial e performática. A sexualidade humana é uma constructo cultural, tanto quanto os hábitos alimentares e corporais. Nascemos machos e fêmeas e a sociedade nos faz homens e mulheres. Mais ainda: o ser masculino e o ser feminino variam enormemente de cultura para cultura, modificando-se substantivamente ao longo das gerações dentro de uma mesma sociedade. Nos livros “Entre a Luxúria e o Pudor – A História do Sexo no Brasil” e “Prazeres e Pecados do Sexo na História do Brasil”, de Paulo Sérgio do Carmo, basicamente a construção histórica da sexualidade brasileira, destaca a presença primacial de três complexas matrizes sexuais: o modelo sexual hegemônico dos donos do poder, representado pela moral judaico-cristã fortemente marcada pela sexofobia, a exemplo da passagem bíblica que afirma que “somos fruto de um pecado”, transparecendo o medo ao pecado e o sentimento de culpa, oprimindo gerações durante séculos. E os modelos periféricos indígena e africano, dominados por multifacetada pluralidade cultural e grande permissividade relacional. O autor conclui mostrando a relação estrutural entre escravidão e o machismo, incluindo os estereótipos do século XIX.

Modelo Hegemônico Judaico-Cristão

O traço definidor da moral sexual judaico-cristã é a sexofobia. Diferentemente de outras culturas, onde deuses e sacerdotes praticavam toda sorte de “perversões sexuais” consideradas ou neutras do ponto de vista moral, ou mesmo virtuosas – a religião judaica prima pela dificuldade em conviver com os “vícios da carne”. Javé – diferentemente dos Orixás, de Apolo e Tupã, é um deus assexuado. O céu judaico-cristão - tão diverso dos congêneres dos muçulmanos e germanos – é um paraíso assexual, onde os que na terra foram virgens ou celibatários estarão mais próximos do trono do Cordeiro e da Virgem Maria.
Como traços cardeais da cultura sexual abraâmica, salientam-se o tabu da nudez, o machismo, o patriarcado, a monogamia e indissolubilidade do matrimônio como alicerces da família nuclear, a noção de honra e a virgindade pré-nupcial como requisito para as alianças matrimoniais. Modelo tão rígido comportou, desde os tempos bíblicos, espaço para os desvios, que mesmo castigados alguns até com o apedrejamento ou a fogueira, fizeram parte integrante do modus vivendi de nossos antepassados. Adultério, concubinato, sodomia e violência sexual – todos condenados pelos rabinos e sacerdotes – nem por isto foram completamente eliminados do orbe cristão, e abundam nos arquivos os processos civis e religiosos contra tais pecadores, personagens frequentes em nosso passado colonial. Uma das representações mentais mais interessantes e persistentes entre nossos antepassados ibéricos transplantada para o Novo Mundo, foi o que os teólogos chamavam “heresia contra a fornicação simples” em razão da qual inúmeros colonos de norte a sul do Brasil foram denunciados à Santa Inquisição, por defenderem a proposição herética de que não eram pecado os atos sexuais entre pessoas desimpedidas (que não fossem casadas, virgens ou que tivessem votos religiosos). Outros, igualmente investigados pela sanha inquisitorial, eram acusados de propalarem que “era melhor se casar do que ser padre”, em franca oposição ao ensinamento do donzelo Apóstolo Paulo. Não bastassem às ameaças representadas pelos “heterodoxos” descendentes dos primitivos colonizadores, a moralidade imposta pelo Levítico e Catecismo Romano sofreu seu mais grave embate através do confronto de outros modelos sexuais, aos quais chamamos de “periféricos”, posto terem sido tratados sempre como marginais por parte dos donos do poder hegemônico. Referimo-nos às matrizes sexuais indígena e africana.

Matrizes periféricas: Índios e Africanos

É incorreta a suposição de que índios e africanos ostentassem, cada etnia per si, uma conduta sexual homogênea. O correto é falarmos de “sexualidades indígenas” e “sexualidades africanas” posto coexistirem, lado a lado, na Ameríndia e no Continente Africano, centenas e centenas de padrões sexuais completamente diversos e às vezes antagônicos. Em comum, podemos detectar duas macrotendências: a enorme diversidade estrutural destas sexualidades e uma menor rigidez repressiva, levando-se em o conta que se tratam de sociedades ágrafas e pour cause, baseadas em tradição oral menos rígida se comparada com sociedades dominadas por códigos e leis escritas – algumas – delas, como a judaica, mandamentos escritos em tábuas de pedra e reveladas pela própria divindade.
Se tomarmos como inspiração a sexualidade dos índios Tupinambá, a primeira constatação, que tanto chocou os cronistas coloniais, é a relação absolutamente neutra que tais silvícolas mantinham com a nudez, além de primarem por desbragada luxúria, falando constantemente entre si de suas “sujidades”, incansáveis em procurar variegados gozos eróticos, conhecendo diversos afrodisíacos e magias sexuais, que os cristãos interpretaram como coisas do Diabo. Polígamos, tais nativos praticavam uma espécie de gerontocracia sexual onde os mais velhos guerreiros, aqueles que tinham matado o maior número de inimigos, tinham maior acesso às mulheres mais jovens. Não só os Tupinambá, como diversas outras tribos nas três Américas, abrigavam em suas aldeias grande número de “invertidos sexuais” de ambos os sexos, chamando aos homossexuais masculinos de “tibira” e às lésbicas de “çacoaimbeguira”. Além do que participavam de práticas sexuais com navegantes e aventureiros ingleses e franceses, antes do dito “descobrimento do Brasil, e após a chegada dos enviados à colonização. Assim sendo, satisfaziam as fantasias e taras dos jesuítas, dos senhores de engenho, e a partir do início do século XX, os fazendeiros de café e pecuaristas, na maior discrição e, ao mesmo tempo, temendo serem punidos pelos mesmos.
Quanto à sexualidade dos africanos que vieram escravizados para o Novo Mundo, os traços mais comuns, que aproximariam a enorme diversidade cultural das centenas de etnias envolvidas na diáspora negra, seriam, além da poligamia poligínica, a prática de mutilações sexuais geralmente associadas a ritos de iniciação na infância ou puberdade. Se tomarmos como exemplo algumas etnias do antigo Reino de Benin – de onde procedeu a mais importante leva de africanos no último século do escravismo, notamos como elementos característicos de sua sexualidade a grande liberdade sexual das crianças e adolescentes, tolerância à masturbação recíproca, prática da circuncisão dos meninos e clitoridectomia nas donzelas.
“Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesmo do regime…” dizia Gilberto Freyre, demonstrando cabalmente que a exacerbação erótica observada no Brasil Colonial deve ser explicada não por “defeito” da raça africana, mas pelo abuso de uma raça por outra: “ao senhor branco, e não á colonização negra deve-se atribuir muito da lubricidade brasileira.”
O que temos como certo é que o machismo ibérico assumiu – no Novo Mundo, devido às condições demográficas e sociológicas da escravidão, uma feição muito mais agressiva e virulenta do que a observada em Portugal e Espanha à época das Descobertas. Abaixo do Equador, onde os brancos donos do poder representavam por volta de um quarto dos habitantes, somente a extrema violência e o autoritarismo conseguiram manter submissa toda aquela massa populacional de negros, índios e mestiços, infelizes seres humanos tratados a fogo e ferro pela minoria senhorial. Numa sociedade tão marcada pela injustiça social, somente homens ultraviolentos seriam capazes de manter ordem e respeito junto à “gentalha”, daí ter-se desenvolvido um código de hipervirilidade, que anatematizava, entre os machos brancos, qualquer conduta ou sentimento “feminino”, pois ameaçavam a própria manutenção dessa sociedade estamental e oligárquica. Aí está a raiz do machismo à brasileira, filho bastardo da escravidão.
“Há males que vêm para bem”, diz o brocardo popular, e no caso do regime servil, podemos pinçar alguns elementos que influenciaram positivamente nossa ideologia e práticas sexuais hodiernas. Embora não possamos concordar que nosso país seja um exemplo de “democracia racial’, dadas as desigualdades sociais ainda hoje dominantes em nosso meio, não há como negar que as interações sexuais interraciais se deram no Brasil com muito maior frequência, com menos violência e com maior “cordialidade” do que nos demais países escravistas. Diferentemente de outras sociedades, nas quais os senhores manifestavam nojo e repulsa sexual vis-a-vis às fêmeas das “raças inferiores”, entre nós desenvolveu-se um erotismo mestiço que fez da mulata hoje, e da negra “mina” no século XVIII, o modelo mais cobiçado de parceira sexual.
Um segundo aspecto positivo, herança da miscigenação e hibridismo pluricultural, é a influência das matrizes periféricas de nossa sexualidade, na alforria dos brasileiros da rigidez do Levítico e do Catecismo Romano. No último capítulo, o pensador aborda as transformações de comportamento com surgimento de uma nova geração que opta por uma sexualidade andrógina no século 21.


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