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Uma ode à vida



No livro “Nietzsche Hoje”, de Viviane Mosé, o pensador alemão argumenta sobre uma cultura que lida com o sofrimento, a exemplo do período trágico da cultura grega, quando o objetivo era fortalecer o humano por meio da arte, das festas, de modo a torná-lo capaz de lidar com o sofrimento inevitável da vida – o alvo do processo civilizatório tem sido a buscar por afastar os humanos das frustrações, das perdas, resultando em um ser fraco vivendo em um mundo fundado em crenças, um mundo de ilusões.
O sofrimento mais intenso, próprio da vida, da formação dos corpos, não há como negá-lo, aponta Nietzsche. Então, nos especializamos em técnicas de não ver, não sentir, nem vivendo e nem sofrendo. Estas técnicas vão da ilusão religiosa de um paraíso celeste às ilusões modernas de progresso científico, passando pelas infinitas ofertas do mercado. O que move a máquina civilizatória seria, cada vez mais, a promessa de felicidade, uma ideia, um mito, que nos tem custado muito caro. O que tem exaurido tanto por parte de um consumismo predatório o quanto pelo sustentável. Nietzsche desmonta o que chama de edifício conceitual moderno, ou a teia de aranha de discursos lógicos, dos valores e conceitos que nos enredam em uma determinada perspectiva sobre a vida que nos enfraquece. Ao ler seus aforismos, ele nos leva a buscar desconstruir a moral estabelecida, a complexa argumentação do filósofo alemão exige uma outra atitude daquele que o lê. Esta desconstrução da ideia de felicidade que implica uma nova perspectiva sobre o sofrimento, que pode nos levar a uma relação mais afirmativa e mais intensa com a vida.
Ao contrário de buscar uma interação com a vida, um modo de incentivá-la, a civilização foi se especializando em substituir a vida por um conjunto de signos, de ficções. Um grupo de pensadores livres, como a autora deste livreto, sente a pulsão de contar a história desta ilusão, que tem o nome de razão, este sonho antropocêntrico de controlar a vida e que na atualidade desaba.
Suas reflexões exigem um novo leitor: não apenas aquele que segue passivamente a linha argumentativa proposta, buscando as contradições na interioridade do discurso, mas aquele que faz ele mesmo as diversas e múltiplas conexões que existem entre as questões, especialmente articulando-as com os desafios do instante, do agora. Por isso, se torna difícil falar sobre Nietzsche, estudá-lo, falta sempre alguma coisa, um argumento, um afeto ou uma perspectiva. E as reflexões borbulharão, de forma constante, provocando uma grande curiosidade para os temas mencionados no livro “Nietzsche Hoje”. A linguagem capaz de traduzir, de modo mais fiel o seu pensamento, ainda precisa ser inventada: Alguma coisa entre a prosa poética, da literatura, mesclada a filosofia. Uma linguagem que, também acredito, deva ser a linguagem da população no futuro.
Na primeira parte, que se chama “O abismo civilizatório”, Mosé argumenta que vivemos uma somatória de exaustões humana, ambiental e do modelo racional humano, que criamos no decorrer de nossa história. Esta crise da racionalidade coloca em questão os pilares que sustentavam a civilização, o que gera o intitulado abismo do caos interior.
Em “A sociedade conectada”, segundo capítulo, com foco no contemporâneo e nas novas mídias a autora analisa de modo sucinto os abismos que vivemos e as possibilidades afirmativas de uma sociedade que saiu de um modelo piramidal de gestão, especialmente de pessoas, para um modelo horizontalizado, em rede. Mosé procura também complementar algumas questões em relação ao processo histórico, essencial para o diagnóstico de Nietzsche e da leitura da atualidade a partir dele.
Vale muito a leitura, ler e viver o processo de transformação que nos impulsiona a filosofia de Nietzsche, em sua afirmação da vida, dentro deste abismo civilizatório e seus imensos impasses, antevisto pelo pensador alemão em sua crítica contumaz da cultura. O impacto de suas palavras na realidade o torna um escritor verdadeiro, num mundo definido como o mais cego, a presença de seres humanos, a exemplo de Viviane Mosé, que a ainda insistem na possibilidade de mudança adquire uma importância suprema.

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