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Como folia carnavalesca

 



A humanidade não pára de se divertir com grandes pileques tomados, subvertendo a ordem natural das coisas e colocando na árida rotina do cotidiano um pouco de lirismo, humor e poesia, e matéria-prima da vida simples, divertida, lírica, calma, de uma turma solidária, que sabia, principalmente, viver as coisas boas e, em certos momentos, refletir sobre o contexto que vivenciavam.

Em 1980, ao chegarem no bar da Unesp, as pessoas saiam da gravidade burocrática, atiravam a máscara fora e passavam várias horas dizendo bobagens, xingando aqui, pagando rodadas de cervejas, cantando acolá. Não éramos mais a disciplina, a correção, a lei, o regulamento, éramos os coristas inebriados pela alegria de viver. Evoé, Baco! Como a folia carnavalesca, o grande burburinho dos frequentadores do bar da Unesp é que nos tirava do espírito as grandes preocupações da nossa árdua vida. Delicioso esquecimento! Bar é vício. Feito paquerar a cunhada, passar a mão na mulher do amigo, beijar no elevador a colega de trabalho: começa leve, mas deixa cicatrizes profundas.

Mas, prudentino como paulista gosta de papo furado, né! E aquele bar tornou-se uma de nossas praias. O superpoint cult daquele período. Naquele espaço de luzes consisas, a fina nata pensante desfilava suas pérolas nesses metros de areia, ferro e concreto. Ao fundo, a música dos violonistas Mitio e Guto Crepaldi. Todos os assuntos eram comentados, todos os boatos lançados e nem se chegava a alguma conclusão. Quem não queria participar, valia a pena ficar olhando. Tinha um público bem restrito. A praia do prudentino tem dessas coisas. Nessa praiazinha bem próxima da gente ia “enturmados” e “descolados”.

Lá você não só encontrava pessoas saudáveis, bonitas e jovens, uma minoria trabalhava e ganhava um dinheiro no sufoco. Universitários da Unesp, profissionais liberais, fotógrafos, gráficos, artistas visuais, músicos, pseudo-intelectuais, “patricinhas” e “mauricinhos”, esotéricos de butique, neo-hippies, roqueiros, dragões, peruas, na maior democracia.

O bar, com um pouco de exagero, foi um entreposto de todas as motivações humanas. Poetas – reaparecidos pela primeira vez depois do mimeógrafo – tentavam sobreviver do naufrágio, apertando-os contra o peito, originais que nunca seriam publicados. Foi uma época de facilitário poético, com um crédito de esperança a perder de vista. Não se fechava a porta da glória a ninguém. Todas as estradas do país se entrecruzavam naquele bar, que ainda guardava embrulhos e recados. A geração tomava batida com fervor e a esquerda festiva punha seus ovos nas banquetas de madeira.

Mas depois o bar morreu, e de seu túmulo surgem os espelhos, os mármores, os painéis históricos e as recordações junto às lamentações das fotos não registradas. O tempo trança e destrança os velhos frequentadores, cúmplices de um espaço, de duas ou três anedotas, de uma canção dissipada em dias e semanas, cúmplices de uma certa mistura de luz e sombra. Então os velhos convivas são como peixes desentocados, e o bar antigo perde suas arestas, suas escamas pontiagudas, seus vômitos repugnantes. Ali, os amigos foram mais amigos, os inimigos mais inimigos, as mulheres, mais compreensivas, e a vida tinha um programa.

 

(Esta crônica integra a seleta do 3º Prêmio Literário Carcará 2024 – 65 anos da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT), da Unesp, campus de Presidente Prudente, SP: A minha, a sua e a nossa história.)

 

 

 


Comentários

  1. Prezado Rubens, sua crônica captura com brilhantismo a efervescência de um tempo em que a boemia e o lirismo subvertiam a monotonia cotidiana. Através de um retrato poético e nostálgico, seu texto resgata a essência dos encontros em torno do bar da Unesp, onde, em meio a risos e bebedeiras, se dissolviam as amarras sociais e burocráticas. A atmosfera descrita não é apenas um espaço físico, mas um santuário de liberdade e reflexão, onde a simplicidade da vida e os sonhos de uma geração se entrelaçam. A memória de um tempo em que o convívio era a mais sublime das resistências. Parabéns pelo resgate histórico.

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