(Terceira Parte)
Você rompe
tabus. Escreve bem, vai ser muito famosa, mas tenha muita coragem porque vai
sofrer muito menina. 112
112
Cassandra Rios. Censura: Minha luta, Meu amor (1977, p.30)
Foram produzidas diversas pesquisas sobre a atuação da DCDP e
todas elas apontam para a presença maciça de obras das escritoras Cassandra
Rios e Adelaide Carraro na documentação. Ambas as escritoras foram campeãs de
vendagem e os seus livros foram considerados eróticos e, por isso, também foram
campeãs de obras vetadas, os vetos são taxativos quanto ao teor pornográfico
dessas escritas. Como eram sumariamente proibidos de circular no mercado, eles eram
lidos às escondidas por adolescentes e adultos.
Era uma dessas noites em que os pais já haviam se recolhido e ela,
menina-moça, também. Seu recolhimento era embaixo da cama e por entre suas mãos
um livro, desses que só podemos ler no acolhimento dos nossos esconderijos,
vivendo nas brechas das possibilidades e dos disfarces, quando se aproveita dos
silenciamentos da casa. Outra leitora, num outro tempo-espaço, também lia o
mesmo livro, normalista, havia recoberto a capa, cujos os desenhos alimentavam vontades,
com uma folha em branco, para que os olhares vizinhos não pudessem ver o título
tão cuidadosamente disfarçado. Uma década depois, uma mulher adentrava num
sebo, com uma lista de obras a caçar por entre as estantes empoeiradas. O
vendedor perguntou se queria ajuda, ela disse não, queria ter o prazer da
descoberta, para depois se deleitar na leitura. Seria vergonha?! Da lista, achou
três volumes e, orgulhosa, meio ensimesmada, foi comprá-los. O vendedor sorriu.
Ela acabou sorrindo também, não sem as bochechas rosarem discretamente 113.
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Depoimentos de leitores de Rios (NÓBREGA, 2011, p.4).
Na epígrafe acima, Nóbrega 114 (2011) apresenta situações que
talvez tomaram parte das práticas de leitoras e leitores da escritora Cassandra
Rios. Essa autora foi uma das mais lidas e controversas da história da
literatura brasileira e permitindo entender porque seus contemporâneos a
consideraram o “ícone da imoralidade”. Produzindo entre os anos de 1948 e 1980
que misturavam política, “negociatas” e sexo. Rios é associada com a
desconstrução de alguns tabus sociais. Com temas populares, escrita de
linguagem simples e personagens de fácil identificação, Cassandra Rios adquiriu
um público cada vez maior de leitores e assim atraiu os olhares da Censura
sobre si. Certamente o erotismo descrito em enredos ajudou a conquistar mais
leitores.
Apresentando uma vasta obra, Rios vem despertando interesse em
muitos pesquisadores, sob diversos prismas é avaliada a participação da autora,
seja no cenário literário, político e histórico ou social. A sexualidade e a
pornografia no Brasil das décadas de 1960 e 1970 eram enxergadas pela sociedade
e seus mecanismos de censura – fossem eles autoridades religiosas, civis e
políticas, civis ou políticas – respectivamente, como forma de ordenamento e
degradação social. Tinha-se o sexo e a heterossexualidade como normas para a
reprodução dos padrões morais e cristãos. Sendo assim, a família e a
propriedade estariam resguardadas dos perigos da deterioração.
Refletindo por essa perspectiva podemos compreender melhor o
caráter transgressor da obra de Cassandra Rios. Para alguns autores, a tarefa
de definir o que seria ou não censurado pelo governo era difícil, visto que
havia uma imprecisão no que tange a determinação de pornografia, toda obra com
conteúdo contrário ao regime, à moral e aos bons costumes deveria ser tirada de
circulação ou impedida de ser publicada.
Classifica-se a pornografia a partir da identificação de “quadros”
ou expressões nas quais que explicitam a sexualidade excedendo ao nível de
permissividade das sociedades, dessa forma situa-se na fronteira do proibido.
No entanto, apesar de haver instâncias que determinarão qual o material
considerado lícito ou ilícito na produção artística e/ou literária, cabe a cada
leitor/espectador/consumidor de forma particular, subjetiva interpretar o
conteúdo das narrativas. A pornografia é, ao mesmo tempo, uma categoria que
permite classificar algumas produções semióticas (livros, filmes, imagens...) e
um julgamento de valor que desqualifica quem pode aparecer em interações
verbais espontâneas ou em textos provenientes de grupos mais ou menos organizados
[...] Naquilo que diz respeito à literatura, nunca houve critérios seguros: a fronteira
entre o lícito e o ilícito sempre foi flutuante. A depender dos lugares e dos
momentos, o rótulo “pornográfico” foi colocado a produções que, em outros
tempos ou em outros lugares não seriam listadas nessa categoria.
Cassandra Rios foi uma menina precoce que adquiriu bastante
erudição e desde os tenros anos de sua adolescência demonstrava o talento que
possuía para escrever. No livro Censura...
(1977, p.83) Cassandra relata seu apreço pela literatura:
Todos
comentam, os professores, os seus colegas, é o que você mais faz por aqui, não
é? Em vez de copiar o que os professores escrevem na lousa você escreve
capítulos de romances, scripts que envia para estações de rádio, já ouvi alguma
coisa, contos, faz poesia, acrósticos [...] Consenti que dona Esmeralda mudasse
seu programa de aulas e acrescentasse metrificação, há outros alunos que também
gostam de poesia, e do mesmo modo que você se dedica creio que tem mesmo
VOCAÇÃO, mas precisa aprender a respeitar as aulas e coordenar horários para
sua inspirações (Grifo meu)
Nessa mesma obra a Cassandra mostrando a arte de escrever como uma
vocação e sua erudição numa tentativa de se defender dos ataques vinha sofrendo
acerca de seu trabalho e de seu prestígio intelectual, narra uma conversa entre
a diretora do ginásio em que estudava Odette: “Já disse que não tenho
preferências, nada específico, leio de tudo. Eu fuço nos fichários, nos
arquivos conforme os títulos, conforme o autor e o assunto faço o pedido do
livro, peço muitos” e prossegue apontando os tipos de leituras como
“Biografias, a vida de certos escritores ou compositores ou mesmo políticos
sobre os quais minha mãe as vezes me conta alguma coisa” (CEN, PP.79-80). Sua
relação com a publicação dos escritos também começou cedo 118 e “seu primeiro
trabalho publicado aos 13 anos foi o conto “Tião, o engraxate”, no extinto
jornal O tempo, que logo depois aprovou seu segundo conto “Uma aventura dentro
da noite”.
Atualmente, considerada a porta-voz das transformações dos papéis
sexuais e de gênero na sociedade ainda na primeira metade do século 20. Seja
pelo seu pioneirismo na literatura homoerótica ou pelo simples fato de uma
escritora atingir altos índices de vendagem, o que interessa é que Cassandra
Rios produziu mais do que literatura erótica, ela compôs um arquivo que se
torna indiciário da modificação do corpo social.
Realçando a libido de suas personagens, Cassandra Rios, aos 16
anos, em 1948, com o apoio de sua mãe dona Damiana, publica o livro A volúpia do pecado.
Em entrevista para o jornal O
lampião da esquina, Cassandra Rios se referindo ao seu primeiro livro
afirma que, mesmo tendo recebido apoio financeiro de sua mãe, não se sentia à vontade
para permitir que esta tivesse contato com sua obra. Rios foi categórica em
afirmar que seu conteúdo era impróprio para Damiana.
Miriam –
Deixa eu perguntar uma coisa: em várias entrevistas, que você concedeu, você confessou
que teria feito um trato com sua mãe no dia em que ela lhe emprestou o dinheiro
para editar o primeiro livro, você fez um trato para ela não ler...
Cassandra
– Fiz, realmente, mas não foi só pelo argumento. É porque todos nós da geração,
da década de 40, tínhamos muitos escrúpulos e tabus relacionados a sexo. Hoje
as pessoas falam de tudo, mas naquela época era um horror. Então... (segue-se
uma discussão entre Darcy e Cassandra [...] ela responde que nunca deu um dos
seus livros à sua mãe (O LAMPIÃO DA ESQUINA, 1978. P.9. Colunas 1-2) 121
121 Grifos
do original.
Sob o signo da promiscuidade ou da subversão, acusada pelos
defensores da moral e dos bons costumes de corruptora dos valores da família e
de perversora da juventude, Cassandra Rios paradoxalmente era lida no interior
das próprias famílias, deixando transparecer a hipocrisia que permeava os
discursos da época. A respeito das transgressões que atravessam a escrita da
autora e o momento em que produz sua obra, fica evidente que Cassandra Rios
segue o fluxo das alterações dos paradigmas sociais no Brasil. Pois, é preciso
considerar que só foi possível D. Damiana e a filha Odete se posicionassem
contra os códigos da família burguesa, contrariando a ordem do pai e sua
centralidade na família, levando-se em conta o processo de urbanização e
industrialização vivenciado no Brasil no século XX que, somado ao grande número
de migrantes que para cá vieram, fizeram com que a família deixasse de ter o
controle da produção e esta passasse a gradualmente para os empresários
capitalistas e o Estado, o que favoreceu o enfraquecimento das relações de
parentesco, a redução do tamanho da família e a diminuição do poder do pai e do
marido.
Dentro dos conceitos de tática e estratégias pensados por Certeau,
que considera que as estratégias são medidas tomadas pelo poder instituído que
impõe aos sujeitos determinados padrões, como por exemplo, a censura, pois a
partir dessa medida institucionalizada pelos governos autores, cantores e
demais membros da comunidade artística e intelectual são mantidos sob controle
dos Estados. Já as táticas, seriam “as mil maneiras de fazer”, ou seja, uma apropriação
do discurso do poder (a estratégia) pelos sujeitos visando burlar a norma,
desviando os objetos, os códigos e as aberturas deixadas pelas estratégias
para, assim, redirecionar os usos dos produtos impostos pelas “políticas
culturais”.
124 De
difícil conceituação o termo pornografia é definido historicamente. Desde o
Renascimento passando pelo Cientificismo, Iluminismo e Revolução Francesa, a
pornografia se apresenta como um terreno de conflitos e mudanças. Entre os
séculos XVII e XIX o termo pornografia aparece em tratados que fazem menção à
prostitutas e no ano de 1857 este termo surge no Oxford English Dictionary.
Contudo, o verbete já era utilizado em momentos antes na França. As
transformações nas artes sempre proporcionam compreensões diversas sobre a
pornografia, autores e gravadores pornográficos surgiram entre os hereges,
livres pensadores e libertinos, que ocupavam uma posição inferior entre os
“promotores do progresso do Ocidente”. Para a historiadora Lynn Hunte, como
categoria, a pornografia está vinculada ao desenvolvimento da prática literária
e visual. Vista como um campo de batalha, a pornografia emerge como preocupação
governamental distinta a partir do século XIX. As problemáticas acerca da
conceituação da pornografia, lançam luz sobre a fragilidade do equilíbrio entre
obscenidade e decência, privado e público e aquece os debates acerca de temas
permissivos ou licenciosos e das práticas sociais e sexuais aceitáveis nos
diferentes tempos históricos.
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