(Quarta Parte)
Com a leitura da trajetória de Cassandra Rios, pude visualizar como a escritora inicia a sua carreira – e, posteriormente, tenta escapar da censura – se utilizando de táticas (CERTEAU, 1994) para fugir de obstáculos legais 123 e para romper as correntes sociais que aprisionavam as mulheres da época. Desde a publicação de A volúpia do pecado, Cassandra Rios vai produzindo de forma independente e rompendo com os tabus sociais, pois, “D. Damiana e a filha Odete se posicionassem contra os códigos da família burguesa, contrariando a ordem do pai e sua centralidade na família” (VIEIRA, 2014. P. 55). Às mulheres ainda era reservado o espaço privado, a sexualidade deveria ser encarada em sua função procriadora. Quando se pensa em como a sociedade ansiava o comportamento feminino, podemos enxergar a Cassandra Rios como uma figura simbólica do oposto ao que se idealizava para uma mulher. Há de se pensar que as transgressões de Cassandra Rios vão além de sua escrita pornográfica, visto que as sociedades viviam e indicavam novas configurações para as relações interpessoais e de trabalho, porém, no Brasil muito embora o espaço urbano trouxesse algumas transformações na agenda familiar, a ordem desta mantinha-se conservadora. Com práticas consideradas clandestinas, Cassandra Rios atravessa a década de 1950 e vem recebendo cada vez mais notoriedade. Traduzindo as vontades das mulheres em suas vivências sexuais, ela escreve sem pudores sobre o amor entre iguais.
Nos anos que vigoraram o AI-5 e o Decreto-Lei 1.077, o país viu
uma mulher escrevendo sobre o tesão de mulher, Rios a partir de sua escrita – em nada retraída – expõe em suas narrativas
o prazer e a excitação feminina. Excedendo os padrões morais da sociedade,
ousando duplamente em contrariar esses padrões, que lhe renderam a censura –
uma estratégia do poder -, Cassandra Rios
começa a construir novas táticas para continuar a produzir, desafiando essa ordem
vigente. A partir da década de sessenta e, sobretudo, na década de setenta, uma
escritora mulher que descrevia o amor de mulheres por outras em suas obras,
também escrevia sobre as relações de poder e as práticas de personagens que
fazem uso dos novos comportamentos para “outras” sociabilidades, também
evidenciando a prostituição, o consumo de álcool, dentre outros temas que
assolavam a moral da sociedade.
Na década de setenta, a sociedade já havia absorvido algumas
questões relativas aos novos comportamentos, a liberdade vivenciada pelas
mulheres, tema central na obra da escritora, talvez, incomodasse menos que
outros temas inclusos em suas obras. Somando às publicações eróticas, Cassandra Rios aborda feridas quase que intocadas por outros escritores, na
lista de suas obras estão inclusos títulos que discutem o transformismo 125,
sincretismo religioso, pedofilia, relações raciais, conflitos de classes.
Considerada pioneira por tornar personagens lésbicas protagonistas, ela rompe
com o cânone literário brasileiro. Todavia, acredita-se que o que as duas
questões que mais incomodavam os guardiões dos bons costumes eram as
representações das relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo,
pois essas eram descritas sem seus pormenores e figuravam personagens pertencentes
às classes média e alta e o fato de as narrativas serem produtos de uma escrita
feminina. Cassandra Rios, por força
dos interditos de suas obras chega a publicar usando nomes masculinos como
pseudônimos. Em entrevista para uma revista assume que teve “de entregar vários
livros assinados com pseudônimos estrangeiros, todos com os direitos
definitivos. Era uma roda-viva, eu entregando livros e mais livros e não
recebia nada, só para sobreviver (Revista Fatos e Fotos, 1983, p. 62. Coluna 1
apud VIEIRA, 2014).
Servindo-se de pseudônimos como Clarence Rivier, Oliver
Rivers, Strom’s e Fleuve, Cassandra Rios escapa as
estratégias do poder que constantemente a censurava, em face de um governo conservador
e instituições organizadas da sociedade civil lutando incessantemente em favor
da moral e dos bons costumes, a própria autora assume que a prática de assinar
suas publicações com outros nomes – principalmente, masculinos – foi uma tática
para subverter a ordem e burlar a censura.
Não eram
meus livros que estavam proibindo e, sim, a escritora que na época mais vendia.
Tanto assim que esses romancinhos intencionais gerados por uma grande revolta,
igualmente escritos por mim, eram adquiridos nas livrarias e bancas de jornais,
afinal não eram Rios, mas eram Rios em outros idiomas, Rivers, Strom’s, Rivier,
Fleuve, etcétera 126.
125
Classifiquei a obra de Cassandra Rios incluindo os livros Georgette (1956) e
Uma mulher diferente (1965) nessa temática.
126
Descreditada de sua potencialidade artística, foi assim que Cassandra Rios se
viu obrigada a prostituir (RIOS, 2000, 134). A academia composta àquela época
por homens, onde heterossexualidade excedia como norma, não aceitava que seus
escritos e suas heroínas figurassem enquanto resistência.
Desse modo, entendo a relação de Cassandra Rios com os códigos morais e legais de sua época a partir
dos conceitos de Michel de Certeau,
pois ao assumir os codinomes diferentes, sustentando discursos sobre moralidade
em sua obra, ela construía mecanismos para escapar das malhas dos seus
perseguidores. Cassandra Rios teve que falsificar sua identidade para publicar o
livro A volúpia do pecado, de acordo
com as normas editoriais, assim, havia a necessidade de que a identidade da
autora, em certa medida, fosse preservada. A escritora sempre demonstrou apreço
pela descrição de sua identidade pessoal e como não era exibida a sua imagem
associada a obra, começaram os rumores de que o título em questão seria uma
produção masculina sob o pseudônimo de Cassandra. Sua escrita foi confundida
por vezes com o estilo de um outro escritor bastante famoso, Nelson Rodrigues. Após os episódios de
apreensão de suas obras durante a ditadura, Cassandra Rios percebe que não era bem o conteúdo das obras que provocavam os
vetos, mas sim a escritora que na época mais vendia e assim, entendo ser mais
fácil para os homens a liberação das obras, a autora investe nos padrões
machistas aceitos e publica seus livros como sendo de autoria masculina. Quando
em entrevista para a revista TPM (2000) sobre esse machismo literário, Cassandra declara que foi massacrada e
defende que
Desde os
primórdios da civilização a mulher luta pelo direito de falar, de pensar. Se o
homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher escreve, é ninfomaníaca,
tarada. Nunca pensei desse jeito. Escrevi com a ingenuidade de quem nasce
escritor. 127
127
Entrevista concedida à Fernando Luna para a Revista Tip para as Mulheres (TPM).
Disponível em http:<//revistapm.oul.com.br/03/vermelhas/home.htm>.
128 Sobre
Homossexualidade na Ditadura, ver: GREEN, James; QUINALHA, Renan (orgs.).
Ditadura e Homossexualidade: repressão, resistência e a busca pela verdade. São
Carlos: EDUSCAR, 2014.
Os estudiosos que se debruçam sobre a Cassandra Rios enfatizam sua contribuição para a história da
literatura brasileira, como já mencionado, devido o pioneirismo na introdução de
protagonistas lésbicas. De fato, seus romances trouxeram uma maior visibilidade
acerca do universo homossexual, as “denúncias” sobre a violência e o descaso e
a opressão dos homossexuais em seus livros condiziam com as vozes dissonantes
do movimento homossexual daquela época. Desse modo, com uma escrita tipicamente
lésbica, Rios atinge um alto número de
vendagem. 129 Não apenas representando o prazer feminino pelo viés da
homoafetividade 130, a autora defende em suas obras a possibilidade do gozo da mulher
a partir de relações amorosas e de vivências afetivo-sexuais onde o deleite vem
colidir com as convenções conservadoras, patriarcais, sociais defendidas pela
Igreja e Estado. Motivada por essas questões e apoiada na legislação do
período, a censura condenou sua obra e constantemente faz apreensões de seus livros
em bancas de jornais e livrarias, mas em contrapartida a própria repressão
possibilitou um maior número de vendagem para a autora, que em algumas de suas
capas explorava essa condição e apresentava-se como “a autora mais proibida” ou
“mais um livro proibido”.
Como propaganda, Cassandra Rios contava apenas com a divulgação da
apreensão de suas obras em jornais e revistas que se posicionavam contrários ao
regime, entretanto, não somente a imprensa nanica noticiava o recolhimento de
suas obras, mas demais veículos da imprensa – a exemplo do jornal O Estado de
São Paulo – anunciavam desde a década de cinquenta as medidas tomadas em
relação às proibições das obras da autora. O que se verifica em fins da década
de sessenta e ao longo da década de setenta é a associação de sua ficção com a
política o tratamento dado pelos jornais à autora evidenciaram constantemente
as “infrações” por ela feitas quando de sua resistência em compor e publicar
seus romances. Seja defendendo, no caso da imprensa alternativa, ou acusando-a
e colocando-a em lugar de ameaça à moral e aos bons costumes.
Bombardeada de acusações, respondendo a processos criminais,
comparecendo a delegacias, sofrendo com a recusa de homossexuais e lésbicas, Cassandra Rios é demonizada por uns e taxada
de moralista e conservadora por outros.
Se por um lado, rotulada de pornográfica ou imoral, e do outro,
como conservadora e moralista, percebe-se como a autora joga com as falhas do
sistema vigente, como ela localiza as fragilidades do discurso moralista e
conservador e se instala nessas fissuras. Não se tornando totalmente
subordinada aos códigos de sua época, fazendo uso de astúcias (CERTEAU, 1990) que
a permitiram se contrapor à ordem, em especial do Estado e da Igreja, como
também realizou práticas de subversão em diferentes esferas de sua vida.
Obscena, erótica e pornográfica, essas as classificações da
produção de Cassandra Rios. Mas estes
são termos de difícil conceituação, para tanto é necessário considerar que os
valores morais, normas e os limites sociais impostos, são modificados de acordo
com cada sociedade e em momentos históricos distintos. As interdições e
permissividade se alternam de acordo com a demanda de controle social e
subjetivo. Ao longo do tempo-espaço foram estabelecidas novas formas de censura
que sublinham sendo moralmente aceitas pela sociedade, mas também as mercadorias
produzidas, para o consumo cultural de sua população.
129 De acordo
com Piovezan (2005) Cassadra Rios atinge a marca de um milhão de livros
vendidos na década de 1970.
130 Cassandra
Rios possui oito obras com a temática da heterossexualidade (VIEIRA, 2014;
VIEIRA, 2010). Os títulos são: Carne em delírio (1948), O bruxo espanhol
(1952), A lua escondida (1952), A sarjeta (1952), As mulheres do cabelo de
metal (1971), A santa vaca (178/79), O gigolô (1979), A piranha sagrada (sem
data).
Assim, inviabilizar obras de arte e literárias, torna-se o modo
mais eficiente para manter a sociedade sob vigilância e/ou condenar a
sexualidade mantendo o ordenamento social. Para Eliane R. Moraes e Sandra M.
Lapeiz, autoras do livro O que é
Pornografia (1984, p.111) o termo pornografia se configura enquanto o
discurso por excelência vinculador do obsceno: daquilo que se mostra e deve ser
escondido. A exibição do indesejável: o sexo fora de lugar. Espaço do proibido,
do não dizível, do censurado: daquilo que não deve ser, mas é. A pornografia
grita e cala, colocando lado a lado o escândalo e o silêncio.
É bem verdade que as narrativas de Cassandra Rios tinham como
suporte a ostentação do sexo, desejo feminino e em grande medida as práticas
homoeróticas, mas ainda assim, produzindo literatura popular para adultos,
voltada ao consumo massivo, há uma preocupação da autora em registrar
inquietações políticas e a defesa de um amor disto do que se tinha como modelo
e norma. Rios oferece visibilidade
aos afetos e desejos que deviam ser silenciados, seja em nome da moral ou por
uma causa maior como a revolução pregada pela militância de esquerda. Dessa forma,
que a autora mais uma vez transgrediu, pois, produzidos em um contesto de
repressão política.
Seus textos, escritos sob os tacões homofóbicos da rígida censura
militar, do desprezo da militância de esquerda e da repressão da sociedade
patriarcal brasileira, forneceram um novo paradigma para mulheres que, como
Lyeth e Laura, e tantas outras personagens de Cassandra, sentiam desejo por
outras mulheres. [...] Percebe-se que a literatura, diferentemente de uma vertente
de escritos voltados para o estilo do “best seller” ou de uma literatura
engajada, em que ambos são moldados de acordo com os interesses ou de mercado
ou de uma minoria, apresenta como temática as fontes da insatisfação e da
inadequação humanas.
Em 1980, época em que o país experimentava o processo lento e
gradual de abertura política, a Lei de Anistia de 1979, mas apenas consolidada
durante o governo do general João Baptista Figueiredo (1979-1985), alguns
conteúdos de filmes, revistas e livros não fornecem a exibição do ato sexual,
fotografias e tão pouco cenas de nu total, fossem eles masculinos ou femininos.
Para um grupo de estudiosos do tema, há uma miríade de aspectos que tornam a
tarefa de estabelecer fronteiras entre os conceitos de erotismo e pornografia 133, podendo
elas diluir-se ou sofrer transformações de acordo com os parâmetros utilizados
na categorização das experiências a partir das quais estes termos se
constituem. Portanto, em se tratando de conteúdos tidos como pornográficos
abordados três décadas de vigência da Ditadura Militar, especialmente nas décadas
de 1960 e 1970, há de se tornar cautela. Pornografia e erotismo fixam-se no
âmbito da obscenidade, notadamente por sua relação com a sexualidade, embora se
projetem na esfera de construções imaginárias ou representações – sob forma de
manifestações artísticas, livros, filmes, fotografias, e, atualmente, por meio
da internet -, estas se apresentam em contraste com o real. As representações
eróticas e/ou pornográficas não pretendem substituir a vivência da sexualidade,
mas sim explicar práticas ou desejos que foram relegados à obscenidade com o intuito
de reprimi-las.
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