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Gênero que superou o preconceito (4)

  Sonhos do Carnaval de Di Cavalcanti (Quarta e Última Parte) Uma propaganda dos anos 1950 vendia uma toalha de plástico dizendo: “parece linho, mas é linholene”. Escrever crônicas, principalmente as melhores, parece dos exercícios mais simples. O verbo não posa empáfia, a semântica joga com as palavras curtas, de uso comum, e os personagens não vieram do fabulário grego nem das estátuas romanas, mas de alguma esquina do bairro. Parece simples, parece Linholene, mas é linho puro. O crítico Antônio Candido, que classificava a “ persistência da crônica ” como “ um fenômeno interessante da literatura brasileira ”, viu que havia caroço sofisticado por baixo do angu de Braga e da maravilhosa geração dos anos 1950: “Tanto em Drummond quanto nele (Braga) observamos um traço que não é raro na configuração da moderna crônica brasileira: no estilo, a confluência de uma tradição, digamos clássica, com a prosa modernista. Essa fórmula foi bem manipulada em Minas (onde Rubem Braga viveu alg...
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Gênero que superou o preconceito (3)

  Pintura de Di Cavalcanti (Terceira Parte) De início, esses textos que você vai ler não tiravam qualquer onda de se perpetuarem nos almanaques das obras imortais, como é a vontade dos que escrevem um romance. Podiam ser esquecidos no dia seguinte e ninguém ficaria aborrecido com isso. Mas o que fazer se pela qualidade, pelo frescor, pelo tom amigo de conversarem com as gerações seguintes, essas crônicas transcenderam a edição do jornal, continuam atuais e fazendo bonito diante da escrita que evolui? A base de estilo plantada por Alencar e Machado passou pelo frenético andarilho de João do Rio-e-seus-blue-caps-na-belle-époque. Em seguida ganhou formato que ainda se lê hoje com a aparição dos escritores roqueiros de 22. Os modernistas radicalizaram em suas propostas, em romances e poesias, o que já havia nas crônicas desde o início: a vontade de deixar a língua “a fresca”, coloquial, sem medo até, por que não?, de fazer piada. Valorizavam as pequenas cenas e, mesmo em assuntos s...

Gênero que superou o preconceito (2)

  Ciclista (1990) de Iberê Camargo (Segunda Parte) Os exemplos reunidos nesta série de ensaios são clássicos elegantes desse modo particular de escrever que se rotula como crônica, uma iguaria de sal regado a gosto, onde são valorizadas todas as veleidades idiossincráticas – menos palavrões desse jaez. Afetação zero. Eles posam no máximo um jeitão despretensioso, próximo do coloquialismo dos papos de botequim, como costumava fazer Aldir Blanc, ou da conversa jogada fora numa praça de Copacabana, como dissimula João Antônio. Vale tudo, menos ser chato. A princípio essas crônicas tinham compromisso apenas com o efêmero, encher meia página de jornal, manter ocupados os olhos do leitor, e serem esquecidas imediatamente. Deveriam ter a durabilidade de uma notícia. Não foi possível. João Ubaldo Ribeiro, Humberto de Campos, Carlos Heitor Cony não conseguiriam. Transportadas para as páginas dos livros, as crônicas criativas mantém surpreendente vitalidade e frescor. Os cronistas desta ...

Gênero que superou o preconceito

  Os carretéis de Iberê Camargo Craques pelo poder que seus textos têm de seduzir e se tornaram clássicos de referência da nossa educação literária e sentimental A crônica não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz literatura também. Textos feitos para o momento e que, pela qualidade, vão ficar para sempre. Eis o breque desta série de autores que transformaram um gênero, chamado ora de menor, ora de literatura de bermuda, num chorrilho interminável de grandes clássicos de referência de bons momentos em nossa língua. A crônica brasileira tem uma cara própria, leve, bem humorada, amorosa, com o pé na rua. Quase 170 anos depois de instaurada nos jornais, ela apresenta uma espetacular capacidade de se reinventar e se comunicar com o leitor. Literatura é tudo aquilo que permanece. É o caso dos cronistas que vêm no próximo ensaio. Se levar a palavra ao pé da letra e destrinchar o radical grego chrono , tempo, você vai chegar à aborrecida definição que o dicionário dá para c...

Crítica à esquerda festiva

  ( Oitava   e Última Parte ) Como o poeta Drummond, Antônio Callado em seus romances indaga sobre a existência da nação, em vez de partir dela como um dado. E, ainda, como o poeta que reescreve a canção de exílio de Gonçalves Dias, Callado também a atualiza revelando o exílio mais terrível e mais difícil de superar: o exílio do lado de cá, o lá encarnado aqui, para onde não se volta de avião ou de barco. Depois de Quarup , o próximo romance que Antônio Callado publicou foi Bar Don Juan . Costuma ser visto como uma crítica à chamada esquerda festiva, no tempo das guerrilhas. Época em que intelectuais de esquerda, derrotados em 1964, acalentavam o sonho de fazer a grande revolução na América Latina, unindo-se a Che Guevara na Bolívia. O livro mostra esses intelectuais revolucionários falando mais do que agindo; na maior parte do tempo, fazendo seus planos num bar do Rio de Janeiro cujo nome se liga ao de João, um dos personagens centrais e marido de Laurinha, ambos presos e...

País mascarado (7)

  (Sétima Parte) Os impasses do escritor na busca do sentido em meio ao fragmento, da qualidade estética do romance político, da legibilidade na realidade ilegível, transparecem talvez ainda mais em Sempreviva , que propõe uma visão quase freudiana da História, convidando-nos a descer aos porões de cada um para localizar as raízes do sadismo, no indivíduo, e do fascismo, na sociedade: os avessos dos tios Lulus, dos Shibatas/Knuts e dos Fleurys/Claudemiros. Que nessas tentativas uns acusem o hermetismo ou a linguagem excessivamente elaborada (críticas correntes a Reflexos do Baile e a Sempreviva, respectivamente) é natural. Afinal, a busca se dá em terreno adverso e em tempo desesperado e desesperançado. À margem da nação O que fica de bastante significativo para a nossa reflexão é a ironia que, machadianamente, vai minando a imagem do Brasil gigante, de florestas exuberantes, flores perfumadas e belas Iracemas, para deixar aparecer o que ela mascarava: a situação da maior p...

País mascarado (6)

  (Sexta Parte) A utopia revolucionária de Nando e essa nova religiosidade bebem muito na fonte da civilização indígena, mas também nas heresias do matriarcado. É o signo da Virgem Maria, cultuada no passado pelos portugueses, relembrada por Antonio Vieira no Sermão da Nossa Senhora do Ó e reinventada em Francisca ou Lucinda (as mulheres-terra-mulheres-flor), que permite sustentar a possibilidade de plantar sementes de um mundo novo onde “ Francisca é o centro de Francisca ”. Essa “ identificação da mulher com a terra, do sexo com o centro do país (veja-se a cena de amor de Nando e Francisca entre as orquídeas) e do centro do país com o centro da vida – o sentido da existência – define a necessidade de integração global ”, que Ferreira Gullar localiza em Quarup e que permanece no horizonte dos romances posteriores, apesar de todo o empobrecimento da dimensão utópica que se observa neles. Callado é um tanto profético, também nesse sentido, porque meio reichiano e marcusiano, a...