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Gênero que superou o preconceito

 

Os carretéis de Iberê Camargo

Craques pelo poder que seus textos têm de seduzir e se tornaram clássicos

de referência da nossa educação literária e sentimental

A crônica não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz literatura também. Textos feitos para o momento e que, pela qualidade, vão ficar para sempre. Eis o breque desta série de autores que transformaram um gênero, chamado ora de menor, ora de literatura de bermuda, num chorrilho interminável de grandes clássicos de referência de bons momentos em nossa língua.

A crônica brasileira tem uma cara própria, leve, bem humorada, amorosa, com o pé na rua. Quase 170 anos depois de instaurada nos jornais, ela apresenta uma espetacular capacidade de se reinventar e se comunicar com o leitor. Literatura é tudo aquilo que permanece. É o caso dos cronistas que vêm no próximo ensaio.

Se levar a palavra ao pé da letra e destrinchar o radical grego chrono, tempo, você vai chegar à aborrecida definição que o dicionário dá para crônica: “Compilação de fatos históricos apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo”. Isso pode até ter acontecido, e querem alguns que a carta de Pero Vaz de Caminha foi nossa primeira matéria no gênero. No início da história que nos interessa, a crônica que surge na relação com a imprensa, os primeiros autores recebiam como missão escrever um relato dos fatos da semana. Eram os chamados “folhetins”. Aos poucos a tarefa foi entregue a penas geniais como a de Machado de Assis, na virada para o século XX, e o gênero, sem pigarrear, sem subir à tribuna, ganhou cara própria. Passou a refletir com estilo, refinamento literário aparentemente despretensioso, o que ia pelos costumes sociais. Narrava o comportamento das tribos urbanas, o crescimento das cidades, o duelo das amantes e tudo mais que se mexesse no caminhar da espécie sobre esse vale de lágrimas. Eis a crônica moderna. Ela ocupa hoje pelo menos meia página diária em todos os grandes jornais brasileiros e, quando transformada em livro, como no caso das produções de Veríssimo e Arnaldo Jabor, fica durante dezenas de semanas na lista dos mais vendidos. É, sem dúvida, o fenômeno de aceitação popular, o contato mais cotidiano do brasileiro com os grandes autores da língua.

Desencaixotando Machado: a crônica está no detalhe, no mínimo, no escondido, naquilo que aos olhos comuns pode não significar nada, mas, puxa uma palavra daqui, “uma reminiscência clássica” dali, e coloca-se de pé uma obra delicada de observação absolutamente pessoal. O borogodó está no que o cronista escolhe como tema. Nada de engomar o verbo. É um rabo de arraia na pompa literária. Um “falar à fresca”, como o bruxo de Cosme Velho pedia. Muitas vezes uma crônica brilha, gloriosa, mesmo que o autor esteja declarando, como é comum, a falta de qualquer assunto. Não vale o que está escrito, mas como está escrito. Manuel Bandeira dizia que Rubem Braga era sempre bom, mas “quando não tem assunto então é ótimo”. Ou seja, receita de crônica é uma obra particular, onde cabem quase todos os ingredientes – mas, por favor, sempre com muito molho. As de Clarice Lispector vêm regadas de azeites de alma. As de Lima Barreto trazem no tempero alguma erva colhida num quintal suburbano.

Não faltam bons chefs e receitas nessa cozinha.

 

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