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Crítica à esquerda festiva

 

( Oitava  e Última Parte )

Como o poeta Drummond, Antônio Callado em seus romances indaga sobre a existência da nação, em vez de partir dela como um dado. E, ainda, como o poeta que reescreve a canção de exílio de Gonçalves Dias, Callado também a atualiza revelando o exílio mais terrível e mais difícil de superar: o exílio do lado de cá, o lá encarnado aqui, para onde não se volta de avião ou de barco.

Depois de Quarup, o próximo romance que Antônio Callado publicou foi Bar Don Juan. Costuma ser visto como uma crítica à chamada esquerda festiva, no tempo das guerrilhas. Época em que intelectuais de esquerda, derrotados em 1964, acalentavam o sonho de fazer a grande revolução na América Latina, unindo-se a Che Guevara na Bolívia. O livro mostra esses intelectuais revolucionários falando mais do que agindo; na maior parte do tempo, fazendo seus planos num bar do Rio de Janeiro cujo nome se liga ao de João, um dos personagens centrais e marido de Laurinha, ambos presos e torturados algum tempo antes.

A história não é linear como em Quarup. Entremeiam-se cenas do presente, discussões do grupo no bar, ou de Laurinha e João (obcecado pela visão do torturador de sua mulher, que a violentara na sua frente, quando ambos estavam presos) e, paralelamente, momentos do passado, da prisão ou da vida de cada personagem, antes de se engajar nas lutas revolucionárias. Também não há uma continuidade espacial, pois, a par das cenas no Rio de Janeiro, ocorrem outras na região do Araguaia, onde estão Joelmir e Gil, antigos companheiros que se cansaram de aguardar as instruções do comando central para irem juntar-se a Guevara. Aparecem ainda as atribulações deste na Bolívia, perseguido pela polícia. Mas, mesmo em meio a essa simultaneidade, a história avança, pois o grupo do Rio resolve finalmente juntar-se aos companheiros do comando central, partindo em expedição para o Araguaia. Entretanto, ao encontrarem Joelmir e Gil, verificam que chegaram tarde: eles já “estão noutra”. Joelmir casado, não está mais disposto a lutar; Gil, descrente da revolução, quer escrever um livro sobre o amor e a natureza no centro do Brasil, onde pretende viver com Mariana, sua namorada. Na última hora, Joelmir e sua mulher resolvem acompanhar o grupo, mas todos são apanhados pela polícia, quando cruzam a fronteira num barco, portando as armas que pretendiam levar a Guevara.

Quase simultaneamente à morte dos brasileiros, metralhados no barco, Guevara cai nas mãos da polícia boliviana. Restam Mariana, Gil e Laurinha. Esta volta ao Rio de Janeiro, onde pretende buscar novas razões de continuar vivendo e lutando. Mariana, cansada da inércia da vida com Gil, excessivamente voltada para a própria felicidade, abandona-o e vai para Cuba com uns amigos que escaparam com vida.

 


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