Ilustração de Rubens Shirassu Júnior
Era preciso que ficássemos imóveis, talvez, respirando com mais cuidado, até que levássemos as mãos e os corpos de encontro. Então, tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido, mais uma vez, os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda ansiedade, preocupação, stress, inquietação, medo, apesar da população mesquinha e frívola da cidade imensa, que transitava lá fora, nos veículos, dos quais nos chegavam o barulho distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes, o ruído de um carro estacionando em frente de casa. Todos os barulhos, por mais intensos que sejam, caem nas águas do silêncio e viram gotas brilhantes como contas de vidro, fundem-se com as cores das auroras.
Tínhamos os ouvidos apurados, esperávamos quietos, a cadência das gotas batucando no telhado. Um segundo, dois – e o batuque ritmado tocava alto, rascante dentro das nossas cabeças. Que mecanismos são acionados para produzi-los, se nada neste mundo é gratuíto? Um grão de areia tem significado relevante; uma gota d'água é partícula do rio mais caudaloso que possui a cor de vento.
Se os inimigos estivessem escutando as nossas portas, mal ouviriam vagos murmúrios; e o nosso silêncio imenso era ponteado de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa da chuva desaguando lá fora, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis e almofadas boiando na casa. Sons, vozes e ruídos se extinguem quando deixamos de ouvi-los ou continuam em vibração nas regiões particulares do universo, esse nosso desconhecido? Seriam ondas fluídicas, da energia consciente de cada um de nós, do nosso cérebro, matriz de todos os pensamentos e do qual, também, pouco ou nada sabemos? O silêncio se associa bem ao incenso que queima e espalha o aroma dos ritos antigos, com sua musicalidade e cânticos celestiais louvam aos iluminados deuses da natureza.
O mundo exterior ia, pouco a pouco, desistindo de nós; pouca gente batia palma no portão, quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor e sofrimento, muita hesitação, longa tortura, preconceito, estigma, maledicência, chacota e humilhação. Agora, a vida éramos nós dois, apenas. Sabíamos estar exilados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperavam para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, tão louco, bobo e bom como nunca mais haverá.
***
Ficávamos quietos, abraçados, imóveis contemplando as gotas de chuva, até que o barulho parasse, voltasse para a rua, para sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante.
Eu sentia dentro de mim, essa espécie de sensação doce, única e boa, como um vinho que tonteia, como se meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, como se o odor de sua pele tivesse entrado na minha. Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde se filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão como terra de fazenda, num tom castanho escuro”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado. Ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo não os via assim, em plena luz de relâmpagos), um olhar de apelo e de uma leve tristeza clandestina, onde, entretanto, ainda havia duas pequeninas lágrimas semelhantes a corações invertidos, uma resignada esperança de que não terminasse aquele momento de felicidade. De que ficássemos em nosso exílio voluntário, no quarto ornamentado por dois vasinhos, com nossas sementinhas eternizadas para sempre.
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