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Veias abertas da vida miserável


Carolina Maria de Jesus na extinta Favela do Canindé





O brilho de uma escrita permanece pela forma de narrar




Em 1958, o jornalista e escritor Audálio Dantas revelou aos leitores o diário de uma catadora de papel, negra, mãe solteira, semialfabetizada que narrava o dia-a-dia na extinta Favela do Canindé. O depoimento cru e forte de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), marcou por sua denúncia social, lançando uma luz sobre as privações e a vida corriqueira de quem não tem perspectiva de ascender na vida.
Em uma semana, o livro vendeu toda a sua primeira edição de 10 mil exemplares, além de ser vertido para treze idiomas. Só para se ter uma noção da importância e valor do livro, o prefácio da tradução italiana foi assinado por ninguém menos do que o consagrado Alberto Moravia.
Hoje, 50 anos depois da publicação de Quarto de Despejo, os seus manuscritos que lhe deram origem foram doados por Audálio à Biblioteca Nacional. Isto aconteceu durante uma visita de Audálio e da filha de Carolina, Vera Eunice, ao presidente da instituição, Galeno Amorim.
Dentro de livros de contabilidade, cadernos de compra e venda, além de cadernos escolares, que Carolina de Jesus encontrava no lixo, estes tipos de papéis serviram para rascunhar ideias, frases esparsas, observações sobre o limite e a violência da miséria, histórias com intensa carga dramática e realista. Material que compõe o quadro de madeira talhada, de traços fortes, da rotina letárgica de gente simples, excluída por não viver em sociedade. É o que se chama de “mundo cão”, sem o lirismo ou a beleza romântica e boêmia das músicas de Noel Rosa, Geraldo Pereira e Wilson Batista. Esses cadernos de notas repelem, definitivamente, qualquer suspeita em relação à autoria do livro, desconfiança que chegou a ser explicitada por muitos anões morais, preconceituosos e acadêmicos. Mas o seu brilho, de uma escrita viva como sangue, permanece porque corre pulsante pelo seu depoimento sincero, às vezes, triste, marcado a ferro e fogo, mantendo a chama acesa em razão de seu inegável talento, que nenhuma universidade ensinará.
Diz o antropólogo Roberto da Matta, sobre a voz da cronista do submundo, apelidada na época de “Cinderela Negra”: “Realizou um feito único na sociologia da pobreza mundial, escreveu sobre o seu dia-a-dia, objeto miserável, cru, doente, louco, marginal, revoltante e socialmente doentio. Esse cotidiano capitalista que, desde os escritos de Karl Marx, se deseja inutilmente humanizar.”


(Fonte: “Audálio Dantas doa manuscritos de Carolina de Jesus”, de Gabriel Kwak, páginas 12 e 13, de O Escritor, UBE, número 126, agosto de 2011.)



Clique logo abaixo, e acesse o link do programa “Universidade Já”, onde a professora Germana Henriques Pereira de Sousa, da UNB, comenta sobre a descoberta do jornalista Audálio Dantas e as traduções da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus para o francês.



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