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A Construção da Catedral





Marcel Proust (1871 - 1922)









Nessa existência, onde quase nada era um modelo
a ser seguido, tudo passa a ser exemplar









            Quando resolveu, depois de uma vida “centrifugada” pelo mundanismo, pela conversação nos salões, pelo ameno turismo do ser, escrever sua trilogia Em Busca do Tempo Perdido, essa que seria a obra de sua existência à procura de sua essência, Marcel Proust pediu que lhe arranjassem uma camisa de tricô. É com ela que se põe a trabalhar, depois de aquecê-la ao máximo na lareira.
            O Marcel charmant, dos salões aristocráticos, conversador infatigável, com sua voz delicada, salmódica, ficara para trás. Outro homem ocupa o seu lugar. Proust sem proustianismo. No lugar da flor mundana da botoeira, ele tem agora colada no peito essa malha candente de guerreiro decidido a ir à luta. Começa o grande e modesto caminho através do coração humano. O radical turismo do ser. Começa a Recherche com No Caminho de Swann.
            Não tem muitas forças consigo. A asma, as sufocações, a enxaqueca, a existência de amador rico e indolente, a própria demanda tirânica de afeto consumiram muito delas. É no livro mesmo, que protelou tanto tempo, e que irá agora protelar a sua morte, que irá encontrá-las.
            O caminho de Swann, de Guermantes, a infância e a maturidade do Narrador, aproximam-se movidos pela composição soberba. O desenho se completa. Proust diz a Céleste, ainda vigilante: “Celeste, acho que trabalhei bem”. Seu romance, que ele comparava a “um monumento druídico no topo do qual as pessoas podem contemplar a rotação dos seres”, está pronto. Vem um abcesso no pulmão. Proust morre em seguida. Os volumes começam a sair pela NRF. Poucos trabalharam tão bem. Tendo partido de uma existência de amador rico, amena, folgada, diletante, é às tarefas da inteligência que ele se converte, empurrado pela exigência e pela enormidade da sua obra e do trabalho. Nessa existência, onde quase nada era um modelo a ser seguido, tudo passa a ser exemplar. Há muito pouca coisa maior do que estas tarefas tal como Proust as cumpriu. Enquanto houver vida humana, pensamento e vontade de compreensão neste mundo haverá sempre alguém olhando do topo do seu monumento druídico.




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