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A Gênese do Nosso Tempo




Proust criou um estilo único no século XX



 



A decadência e os últimos fulgores

do idealismo estético das classes abastadas

 

 








            Marcel Proust via a sua “Recherche” como um “monumento druídico”, no qual, dizia, era possível “telescopiar” a rotação dos sentimentos, das idéias, dos seres. Não exagerava. Seu romance, além de um impressionante triunfo espiritual do autor sobre si mesmo, é também uma construção intelectual completa. Mas, parece inacreditável que tenha sido possível. Proust, que “morreu por não saber como se abre uma janela e se acende uma lareira” (como diagnosticou o seu editor Jacques Rivière), incapaz de desfazer-se da figura da mãe, um doente penosamente imaginário, além de metido durante anos na atracação inessencial e mundana dos salões de antes da Guerra de 14, parecia votado a um fracasso irredimível.

            A partir das leis entrevistas no êxtase da “memória involuntária”, desenvolvidas depois com ardente e implacável paciência (alguns que o viram depois disso falam na figura de um legislador, de um profeta judeu, outros num “brâmane antiqüíssimo”), Proust criou uma outra escala, uma grade, um desconhecido instrumento de intelecção. Algo como uma retorta com infinitas curvas e espessuras (como a própria frase proustiana), e que, permeando toda a realidade, o regime dos sentimentos, a maquete da sociedade, as camadas de cultura da sua época, era capaz de precipitar uma verdade de outra ordem. O mundo não vale o mundo, claro, Proust também estava de acordo com a primeira parte dessa cantiga de desengano. Mas, tinha volta: a partir da “Recherche”, ele vale algo diferente.

            O Barão de Charlus, que no início do romance fazia o papel do homossexual agressivo, a natureza hetero tão ostensiva quanto irreal, surge ao final como um Lear desabado e amável. A Duquesa de Guermantes, beleza pura aos olhos do narrador na juventude aparece como “um peixe sagrado”, tão devastada quanto coberta da escama das joias. E claro: a percepção de que os esnobes do Faubourg Saint-Germain, de tanta aura, não valem mais do que os “eletricistas”, por quem o romancista espera ser lido. A obra tornava-se uma catedral onde fiéis poderiam, pouco a pouco, perceber certas verdades e novas harmonias”. Uma desassombrada construção intelectual.

            No romance, ele sugere algumas metáforas militares (carregamento, acumulação, disposição estratégica das forças), e deixa entrever os momentos e incidentes decisivos da conversão do mundano Marcel em herói mesmo do nosso tempo. Há o tema da infância nunca ultrapassada de Proust, o do mundo dos salões, no qual ele fez durante anos a sua ronda tão sôfrega quanto inconsolável. Teve os serviços de Celeste Albaret (que viera do interior e acaba ficando cativada pelo que parece estar se desenrolando ali, com aquele respeito arcaico e imbatível das pessoas humildes pelo trabalho artístico e pelo gênio). Ela “circula” por ele. Ele lhe pede que vá aos groons de hotel, aos porteiros, aos condutores de fiacre, “levantar informações”. Que reproduza as entonações, os diálogos, os mots. Precisa disso para mimetizar a existência falante dos círculos aristocráticos e surpreender neles o vazio. Precisa disso para compor esse que é o grande romance sobre a decadência e os últimos fulgores do idealismo estético das classes abastadas antes da Primeira Guerra Mundial.

 




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