Pintura de Gerson Vieira
Um grande poeta faz a gente sentir e
pensar coisas que, sem ele, não saberíamos como dizer. Ele usa as palavras como
se brincasse com a bola, possibilita-nos
criar um mundo paralelo onde o brinquedo movimenta-se entre o chão, o espaço e o
ar azul do impalpável da natureza. Muito além dos ensinamentos herméticos de Hermes
Trismegisto (Thoth) e a alquimia de Paracelso. Vendo até parece fácil. O que
torna o poeta mineiro de Itabira tão atraente a ponto de contribuir para a
formação de uma nova linguagem poética no Brasil e na Argentina dos anos 50, 60
e 70, é, a meu ver, esse equilíbrio entre espontaneidade e reflexão, entre
ironia e desilusão, entre lirismo e rebeldia que a caracteriza.
Por outro lado, parece-me que falar
da presença da cultura brasileira na Argentina dos anos 50 e 60 seria um bom
assunto para um próximo artigo. E nessa presença, ao menos durante esses anos,
a figura de Carlos Drummond de Andrade certamente ocupa um lugar central. Seguido
por Vinícius de Moraes e Milton Nascimento, entre outros. É possível que seus
vínculos pessoais com a Argentina tenham contribuído um pouco para isso, já que
sua filha, casada com um argentino, vivia em Buenos Aires, o que proporcionava
que ele viajasse para lá com frequência, dando a muitos poetas jovens,
sobretudo àqueles que gravitavam em torno da revista Poesía Buenos Aires, a oportunidade de encontrá-lo.
Para mim, durante esses anos, a
presença de Drummond foi insubstituível e, ainda hoje, muitos de seus versos
surgem na minha memória ainda frescos, com a mesma emoção da primeira leitura,
como: “O Rei sem manto e sem joias,/ nu
como folha de erva,/ distribui riquezas não tituladas./ Oferece a transparência/
da alma liberta cuidados vis./ As coisas já não são as antigas coisas/ de
perecível beleza/ e o homem não é mais cativo de sua sombra./ A limitação dos
seres foi vencida/ por uma alegria não censurada,/ graça de reinventar a Terra,/
antes castigo e exílio,/ hoje flecha em direção infinita.”
Você, meu caro leitor, pode conhecer
um pouquinho das artes de Carlos Drummond de Andrade, craque único e inimitável,
no poema "O Rei Menino”.
O
estandarte do Rei não é de púrpura e brocado,
é um lírio
flutuante sobre o caos
onde
ambições se digladiam
e ódios se
estraçalham.
O Rei vem
cumprir o anúncio de Isaías:
vem para
evangelizar os brutos,
consolar os
que choram,
exaltar os
cobertos de cinza,
desentranhar
o sentido exato da paz,
magnificar
a justiça.
Entre
Belém e Judá e Wall Street
no
torvelinho de negociações e equívocos,
a vergasta
de luz deixa atônitos os fariseus.
Cegos
distinguem o sinal,
surdos
captam a melodia de anjos-cantadores,
mudos
descobrem o movimento da palavra.
O Rei sem
manto e sem joias,
nu como
folha de erva,
distribui
riquezas não tituladas.
Oferece a
transparência
da alma
liberta cuidados vis.
As coisas
já não são as antigas coisas
de
perecível beleza
e o homem
não é mais cativo de sua sombra.
A
limitação dos seres foi vencida
por uma
alegria não censurada,
graça de
reinventar a Terra,
antes
castigo e exílio,
hoje
flecha em direção infinita.
O Rei, criança,
permanecerá
criança mesmo sob vestes trágicas
porque
assim o vimos e queremos,
assim nos
curvamos diante do seu berço
tecido de
palha, vento e ar.
Seu
sangrento destino prefixado não dilui
a
luminosidade desta cena.
O menino,
apenas um menino,
acima das
filosofias, da cibernética e dos dólares,
sustenta o
peso do mundo
na palma
ingênua das mãos.
( Páginas 29, 30 e 31 )
RECEITA DE ANO NOVO
Carlos Drummond de
Andrade
Assunto:
Literatura Brasileira - Poesia
Editora
Record
1ª Edição
128
Páginas
ISBN:
9788501085252
Tipo de
Capa: Brochura
Ano: 2008
Clique e assista Consideração
do Poema: Jorge Mautner recita O Rei Menino, de Carlos Drummond de Andrade. Um
vídeo publicado no You Tube em 19 de março de 2014.
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