José J. Veiga
pertence a uma tradição literária cujas raízes podem estar no tcheco Franz
Kafka ou no inglês Aldous Huxley, pela sua maneira de denunciar um mundo cada
vez mais difícil; ou, ainda, no brasileiro João Guimarães Rosa por sua
inalienável relação com o sertão. O contista entretanto, faz de sua literatura
algo muito pessoal, cuja visão do mundo procura registrar, sempre numa
linguagem simples (e até despojada de quaisquer aparatos linguísticos) uma realidade
complexa – menos aparente, como declara o próprio autor -, que resvala os
limites do absurdo. Uma estranha realidade, que ele desencava, ora no mundo
perdido do sertão de sua infância, ora no mundo que está à sua volta. São
contos ambientados em cidades pequenas, cujos modelos poderiam ser a Corumbá ou
a Pirenópolis do passado ou, ainda, fruto da própria imaginação de José J.
Veiga. Uma obra reflexiva, isto é, espelho de uma realidade (a brasileira ou
qualquer uma), levando o leitor a examiná-la pela meditação. Nesse sentido,
ultrapassa o aspecto exótico que em princípio assume, por estar lidando com o
elemento primitivo inserido numa atmosfera de pesadelo, para se situar no
âmbito da obra política, enquanto relação humana – na interpretação mais ampla
dessa palavra. Suas narrativas são
alegorias – representam determinadas situações para dar ideia de outras – e,
dessa forma, são sinais de alerta para as possibilidades realistas que
encerram.
Nas fábulas e, sobretudo, nas
novelas, o mundo organizado de repente se desorganiza: sobreveem o
desequilíbrio e os personagens passam a viver o clima do absurdo. Mas não há
fantasmas nem bruxas e tampouco fadas e príncipes (embora em “Sombras de Reis Barbudos” se fale em
reis), comuns à literatura que desde o século XVII, convencionou-se chamar de
fantástica. O fantástico de Veiga são as situações dolorosas (a expressão
provem de Jorge Luís Borges) contrárias à razão – e o registro de como o ser
humano é capaz de resistir a elas, mesmo quando essa resistência o leve a
situações vivenciais insuportáveis. Como o fato de Manarairema, modificada pela
vinda dos homens da tapera e, do mesmo modo, em “Sombras de Reis Barbudos” quando a “Companhia” se instala, cria
regulamentos e desnorteia a vida da população.
Sob esse ponto de vista, as histórias
de Veiga não são narrativas fantásticas, mas o utiliza como um recurso - o
exagero da verdade - para que o realismo possa emergir. Pois, embora
apresentado de uma forma diferente, o mundo representado em sua ficção é o
nosso mundo mesmo e qualquer um pode ter vivido ou estar vivendo muitas das
experiências relatadas nas suas narrativas, as contradições dos personagens de “A Hora dos Ruminantes” diante do poder
constituído, a loucura-lucidez de Lu, o narrador de “Sombras de Reis Barbudos”, a resposta que Cedil dá a violência, no
conto “A Ilha dos Gatos Pingados” e
até mesmo (quem sabe) o espanto do professor Sorensen ao descobrir o
achatamento da Terra.
Veiga lida com a realidade como se
estivesse fazendo variações sobre o mesmo tema e seus textos atuam como se
fossem fábulas, mas não no sentido das de antigamente (de Esopo ou Ésquilo) que
contém ensinamentos morais. Suas fábulas são sempre abertas a várias
interpretações, inserindo seus textos no âmbito da “obra aberta e plural”, pelo
que argumenta Leo Gilson Ribeiro, “a ser armada conforme a sensibilidade e a
perspicácia de cada um”.* Desse modo, é possível afirmar, por exemplo, que os
fatos insólitos acontecidos em Manarairema, de “A Hora dos Ruminantes”, são a representação simbólica de qualquer
ditadura, onde os bois e os cães invasores representam a autoridade ou não:
pode-se afirmar que foi tudo imaginação – não passa de alucinação coletiva.
Aliás, não é outra a explicação para o insólito na novela “As Sombras de Reis Barbudos” quando um personagem conjetura essa
hipótese:
“
– Alucinação coletiva. Todo mundo pensa que está voando ou que está vendo as
outras voarem. Porque todo mundo deseja muito voar, quanto mais alto e mais
longe melhor.
- Alucinação coletiva. É uma doença, então?
- Não, não. Pelo contrário. É remédio.
- Remédio. E serve para quê?
- Contra loucura, justamente.”
Ditadura, alucinação, loucura ou
lucidez nas fábulas de José J. Veiga, os personagens estão sempre defrontando
com situações incompreensíveis, impostas por sistemas estabelecidos
independentemente das vontades deles. Mas seja nas histórias em primeira ou em
terceira pessoa, seja utilizando narradores infantis ou adultos, Veiga mantém
constantemente uma linguagem econômica e plástica, cuja grande característica é
o já citado despojamento verbal. Ou seja: ele é avesso a metáforas rendilhadas
ou de simbolismo duvidoso; suas descrições servem apenas como elementos de
localização do cenário, abstendo-se de floreios inúteis; seu diálogo é dinâmico
e objetivo.
“Os
cargueiros vinham descendo a estrada, quase casados com o azul geral. Mas uns
homens que estavam na ponte, tentando retardar a noite, perceberam o sacolejo
das bruacas, o plincar dos cascos nas pedras se interessaram. Poderia ser
carregamento de toucinho, mantimento escasso. Enquanto esperavam a confirmação,
acenderam cigarros, otimistas. Falaram de carestia, da falta de quase tudo,
lastimaram a gordura da vaca, uma porcaria que gruda nos beiços e deve grudar
também na máquina do corpo. Lá dentro.
- Nem cachorro gosta.
- Por isso é que está havendo tanta doença do estômago e
intestino.
- Dizem que o sal também não tarda a faltar. Em Valdijurnia
já não está tendo.
- Vai chegar o dia de faltar tudo.
- É o fim do mundo que vem aí.
- Que fim de mundo? Mundo lá tem fim?
- Eu cá acredito. Quem fez o mundo pode muito bem acabar
com ele?”
(A Hora dos Ruminantes)
Comunicativo e discreto é, enfim,
toda a sua literatura. Veiga mostra-se um escritor sem alarde: escreve como se
ainda estivesse praticando – declarou numa entrevista. Sabe-se que reescrevia
várias vezes os seus originais, daí talvez a simplicidade de sua escrita que
recusa uma linguagem acadêmica, que foge ao malabarismo verbal e nunca se perde
no vago ou no gratuito.
Referências
Bibliográficas:
RIBEIRO,
Leo Gilson. “Uma Viagem ao Absurdo” (artigo), Jornal da Tarde, São Paulo,
05.06.1972;
RIBEIRO,
Leo Gilson. “E Nós Seremos Uma Tribo. De Selvagens” (artigo), Jornal da Tarde,
São Paulo, 18.09.1972;
VEIGA,
José J. “A Hora dos Ruminantes” (novela), 1966, 11ª edição, Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1980;
VEIGA,
José J. “Sombras de Reis Barbudos”, (novela), 1972, 7ª edição, Editora
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.
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