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Os Causos Absurdos das Tribos




Capa da primeira edição de 1967










            No livro “A Horas dos Ruminantes”, uma novela de 1966, uma história sobre a opressão que submete um lugarejo pacato que se chama Manarairema e seus habitantes. O conto abre com a chegada dos homens misteriosos, vindos não se sabe de onde, instalam um acampamento numa tapera nos arredores da cidade. Esses homens pouco expressam e nem revelam o seu objetivo. Por outro lado, demonstram a sua exigência e dureza. No decorrer do tempo, vão subjugando os habitantes da cidade forçando-os a cumprir obrigações no acampamento.
            Sob as suas ordens vieram o carroceiro Geminiano, em seguida, o vendeiro Amâncio e, posteriormente, o marceneiro, o ferreiro, um casal de namorados e a indagação: Qual o poder dos homens da tapera? Ninguém sabe ou então não se atreve a explicar: o fato é que uns se tornam esquivos a qualquer pergunta, outros não conseguem disfarçar o medo. Alguns não se submetem ao tratamento autoritário dos “homens”, mas se omitem e não os enfrentam. A forte presença dos homens da tapera consegue mudar os hábitos da cidade outrora alegre, na sua simplicidade interiorana. Já não há mais bate-papos na porta da venda, as pessoas trancam-se em suas casas.
            Um dia, o terror instala definitivamente: centenas de cães ocupam a cidade, entram nas casas, acuam os habitantes. Durante muito tempo ouvem-se uivos, latidos e gemidos dos cachorros, que ocupam tudo como se fossem verdadeiros donos. Depois, misteriosamente, abandonam Manarairema. Mas a cidade não estava livre: outra invasão colhe de surpresa a população. Dessa vez são os bois: a hora dos ruminantes. Como os cães, ocupam tudo, encurralam as pessoas, invadem as residências. “Vivendo como prisioneiros em suas próprias casas as pessoas olhavam suas roupas nos cabides, os sapatos debaixo das camas e suspiravam pensando se voltaria ainda o dia de poderem usar aquilo novamente.”
            O clima de pesadelo paira em tudo e a vida da cidade muda, mais uma vez, em função dos ruminantes. Um dia, o gado se recolhe em massa à tapera dos homens estranhos: estes, também, desaparecem numa certa noite, tão misteriosamente como chegaram.
            Assim, a cidade volta a ser o que era antes: um pacato lugarejo, com crianças brincando nas ruas, gente conversando na porta da venda, vivendo na paz. Ninguém explicou às pessoas de Manarairema os estranhos acontecimentos. Elas também não procuraram explicação. Simplesmente, aceitaram tudo até que passou. O clima de tensão constante percorre a obra de José J. Veiga, em decorrência da opressão que pode ser representada pelas violências física e moral, mas sempre agressões – subjugando homens, mulheres, crianças e cidades inteiras.
            Os personagens da ficção de José J. Veiga vivem num mundo dividido em dois grupos: de um lado, o opressor; de outro, o oprimido. Um sistema assim formado poderia expressar o caráter de confronto, passível de se estabelecer. Entretanto, o questionamento nunca acontece com evidência. Em “A Hora dos Ruminantes” o povo praticamente aceita o absurdo e espera que a ordem se restabeleça: um ou outro se aventura a visitar a tapera dos homens estranhos – mais por especulação do que por qualquer outra atitude. Nos contos de “A Máquina Extraviada”, o mundo é uma ameaça constante e não se sabe que é ou não é perigoso. O mesmo acontece em “Os Pecados da Tribo”, uma novela sombria, onde um personagem traz o sugestivo nome de “Cônsul-não-sei-de-onde”, revelando caráter desconhecido do elemento que vem de fora para subjugar a maioria dos personagens. Vale a pena ressaltar um trecho dessa novela em que se define esse mundo, de maneira simples e magistral.

            “Quando as pessoas passam a andar de cabeça baixa, como se procurassem alguma coisa no chão, e o que era familiar e inocente de repente ganha feições estranhas e ameaçadoras, e todo mundo passa a falar baixo ou não falar nada, com medo da própria voz, e qualquer barulho inevitável soa como se fosse um trovão e causa perda de voz. Arrepios, suores frios, e até pensamentos têm de ser vigiados e tratados como manifestação de doença perigosa, é sinal de que alguma coisa muito séria está acontecendo ou vai acontecer a qualquer momento.”

            Em grande parte das histórias de Veiga, o personagem principal conta sua história ou então relata, de seu ponto de vista, o acontecido a outrem. Um aspecto muito significativo: há um grande envolvimento do “eu”, que pode ser visto como quem vive ou viveu o fato.
            De outra parte, se não existe a distância entre quem conta e quem lê, emerge a verossimilhança do fato, a impressão de um certo primitivismo como nas narrativas orais, os “casos”, devido à espontaneidade do narrador. Além disso, essa preferência de José J. Veiga pela primeira pessoa na narração confere unidade às suas histórias graças aos efeitos da comunicação imediata, que são menores nos contos em terceira pessoa – onde o narrador conta como observador (caso, por exemplo, de “Onde Andam os Didangos”, enfoca com rigor a solidão e a violência de quem vive embrenhado nas matas com desfecho trágico ou de “Domingo de Festa”, uma abordagem que enfoca o índio fora de seu habitat perdendo a sua identidade.) – em que o impacto pode diluir-se, na fabulação indireta.




Referências Bibliográficas:



VEIGA, José J. “A Hora dos Ruminantes”, (novela), 1966, 11ª edição, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980;
VEIGA, José J. “A Máquina Extraviada”, (contos), 1967, 3ª edição, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976;
VEIGA, José J. Veiga. “Os Pecados da Tribo”, (novela), 1976, 2ª edição, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978;






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