Ilustração de Rubens Shirassu Júnior
Corpo bem modelado por natureza, só
conhecia o seu bom humor um círculo restrito de amigos leais e escolhidos a
dedo por ele. Voz firme, arranhada e seca pelo excesso de nicotina dos cigarros
que fumou ao compor os títulos e montando as páginas até altas horas da
madrugada nas oficinas dos jornais. Após sair do trabalho, corrido e exaustivo,
batia ponto no bar Roda Viva (hoje, extinto) na Avenida Coronel José Soares
Marcondes, entre outros. O velho Bruno, como era carinhosamente chamado pelos
poucos amigos, um típico boêmio romântico inveterado dos anos 40, 50 e 60, em
razão do nome de seu pai.
Contar causos, fatos dos meios
gráfico, jornalístico, social e político era mais de uma das manias cotidianas
e noturnas. Isto, após a longa jornada dentro das oficinas dos jornais. Além
das composições como Ronda, de Paulo Vanzolini, Conversa de Botequim e Último Desejo,
ambas de Noel Rosa e as interpretações na voz marcante e única de Jamelão, que
o Bruno chamava intimamente de “nego veio”, eram os seus verdadeiros hinos
sacramentados de amor. O futebol acabou se transformando numa outra grande
paixão. Torcedor roxo, ou melhor, preto e branco do Corinthians. Bruno foi um
exaltador e motivador deste esporte, em razão de um de seus irmãos ter atuado
como jogador profissional.
Um paulista da gema, um prudentino
que trabalhou muito (montou milhares de páginas no sistema de composição a
chumbo no Imparcial, Diário de Presidente Prudente, Correio da Sorocabana e
Carimbos Cipola.) que cultivava a conversa fiada de bar, os acontecimentos que
ocorriam na madrugada, onde você podia atravessar às 2 horas da manhã, nas
principais vias sem ser abordado por algum ladrão, viciado ou qualquer outro
ser da noite. O máximo que pediam era um cigarro, isqueiro ou fósforo. Um outro
mundo em que prevalecia um código de ética no meio da malandragem que, ao
compararmos aos dias atuais, mostra-se romântico, sem violência gratuita,
armadilhas ardilosas e deixa as novas gerações perplexas pela mudança de
valores, comportamento, hábitos e costumes. Conhecida apenas pelos taxistas de
50 anos para cima, pelos porteiros, guarda-noturnos, vigias, policiais
escalados na ronda, repórteres, fotógrafos, linotipistas, paginadores,
revisores de texto e os impressores (gráficos) que imprimiam os cadernos dos
jornais. Sim, eram outros tempos, mas a vida flui como a correnteza de um rio.
Bruno sabia, acima de tudo, levar a
vida de forma simples, saudável, leve, agradável e respeito. É imprescindível
um estudo histórico e memorialístico sobre a profissão de paginador na era de
ouro dos jornais impressos em papel. Junto à radiofonia, esse meio de
comunicação exercia o poder de formar opiniões e, além disso, foram
instrumentos de campanha de grupos políticos e empresariais, para divulgar a
propaganda ideológica destes segmentos e manipular a população dentro dos
interesses do comércio, dos sindicatos e, acima de tudo, estimular a propaganda
e o consumo de produtos e serviços variados.
Em 23 de dezembro de 2014, faleceu o
velho Bruno, o sólido, solitário e melancólico prudentino saudosista de um
mundo cheio de lirismo e soterrado pelos modismos passageiros de consumo e da
modernidade. E assim permanecemos durante décadas até o ano de 2012 trocando
cumprimentos fraternais e constantes. Mas o que é bom dura pouco, como dizia o
outro, e a exploração imobiliária liberada para todas as cobiças e todas as
monstruosidades arquitetônicas, começou a rodear e a incomodar o universo
particular do Bruno com placas de néon, contendo letras grandes de cores vivas
e chamativas - verdadeiros atentados contra a memória do patrimônio físico da
Vila Marcondes, que ninguém parece ver, e contra os quais, aparentemente,
ninguém pode. E, pouco a pouco, foi desaparecendo de minha vista, tragado pelas
massas de concreto e aço, construções geométricas estranhas que nos trazem uma
sensação de claustrofobia, de pânico ou de prisioneiro, sem ar nem luz. Um
esboço da aparente metrópole, deixou-o emparedado, cada vez mais anônimo e
oculto. Até que encontro o sopro de vida, a sua ilha de Crusoé numa mesa
próxima à entrada do bar do Bagrão, na rua Quintino Bocaiúva.
Bruno passou para outra vida,
silenciosamente e sozinho. Um dos últimos paginadores, que trabalhou ao lado de
Mário Peretti, seu colega de profissão, além de ter sido um dos diretores do
jornal mais antigo da cidade. Partiu sozinho porque assim desejou e planejou:
reuniu os parentes mais íntimos, eles estavam em sua casa, no bairro Brasil
Novo. E sabiam que aquele seria o último encontro, a saideira, a despedida de
uma figura folclórica e simbólica da Vila Marcondes, que percorreu em sua vida
a conquistar amigos e a maior moeda de valor: a simpatia e o respeito. Com a
determinação e bravura com que enfrentou o resultado do exame, e toda a sua vida,
o “velho Bruno” cuidou de tudo e chegou a declarar como gostaria que sua morte
fosse tratada. A discrição e a determinação eram traços marcantes da
personalidade de José Onofre, seu nome de registro e de batismo. Por isso, seus
amigos respeitaram e compreenderam o pedido de solidão. Bruno, descanse em paz.
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