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Soller e o arquipélago




Capa de Alberto Deodato da Silva






O autor mistifica os personagens e o mundo em que eles vivem,
como também, a própria linguagem por eles utilizada





           


            As crônicas de Grilo Falante – 60 Anos de Estórias e Humor, (204 páginas, 1ª. Edição, Oeste Notícias Gráfica e Editora Ltda, Presidente Prudente, São Paulo, 2004) de Geraldo Soller, em realidade, acumulam uma série de chistes, que apresentam flashes do cotidiano que chegam ao extremo como anedotas. Desse modo, cria-se uma dimensão do real no qual o lugar-comum e a impotência do indivíduo (que vive destes mesmos lugares-comuns) acabam por criar uma imagem de um universo atípico, carente de heróis e de qualquer solução que salve o homem do marasmo do cotidiano. Em síntese, Geraldo Soller aborda, nas entrelinhas, uma sociedade que exige do indivíduo o cumprimento de uma série de normas em nome do bem-comum, para que ele faça jus a seu status de cidadão. Contudo, como verificamos ao comparar o seu Pinceladas do Cotidiano, seu primeiro livro, quer haja ou não esse cumprimento, o destino de todos os personagens é a encenação/auto-afirmação do guerreiro vencedor na sociedade tradicional, machista e a perda da identidade.
            O microcosmo que Soller estrutura em seus textos, no que diz respeito às relações do homem com a sociedade, estabelece uma dimensão existencial que se justifica e ganha significado à medida que o indivíduo se submete a uma série de provas responsáveis pela obtenção de sua integridade e significação dentro desse sistema. É que a sociedade, ancorada no princípio básico do consumismo, faz com que o homem, para sobreviver dentro dela, assuma uma postura consumista, de realizar tarefas-padrão, ou seja, que ele integre, a seu ver, as “manufaturas” responsáveis por sua transcendência, em nome de valores que o elevariam à condição demodelo exemplar”.
            Os personagens todos do universo solleriano, junto com o grilo falante, seu alter-ego, através dos mesmos rituais utilizando uma linguagem que prima pela absorção de clichês, visam a criação de um universo reduzido a nada. Seu estilo esdrúxulo, que vai do respeitoso ao pernóstico, parece se inspirar, em parte, na linguagem empolada dos locutores esportivos e dos repórteres policiais. Um estilo estereotipado próprio de camadas pretensamente “ilustres” ou “cultas”, com grande semelhança ao caricaturesco Doutor Data Vênia, do cronista Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), um grande manipulador de lugares-comuns ou chavões. Ou seja, o autor mistifica os personagens e o mundo em que eles vivem, como também, a própria linguagem por eles utilizada. Fazem parte de seu conjunto de ilhas, ou arquipélago, os colegas jornalistas, radialistas, amigos de associações filantrópicas e sociais, políticos locais e nacionais, entre outros. Fica evidente o grande divulgador e a contribuição de Geraldo Soller para a memória da imprensa e a história de Presidente Prudente, para a evolução da crônica prudentina, pois reside em mostrar o latente orgulho e bairrismo (no caso de chamar a antiga Vila Marcondes de principado) e um dos últimos colunistas autodidatas. Soller sobreviveu sob os olhos da censura, entre os anos 60 e 70, onde muitos jornalistas e radialistas se compraziam com a linguagem enganadora de uma certa prosa, que faz do sentimental o instrumento que aliena o leitor, sob o pretexto de defender a moral, a família e as justas causas sociais.




GRILO FALANTE
– 60 ANOS DE ESTÓRIAS E HUMOR
Geraldo Soller
Crônicas
204 Páginas
1ª Edição
Oeste Notícias Gráfica
e Editora Ltda.
Presidente Prudente
São Paulo
2004






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