Um ato pequeno de arrependimento e necessidade,
de nos
redimir, perante os séculos de violência
e desvalorização da
mulher
Vivemos em pleno universo das
transformações na moda, nos costumes e consumo. Começam a mudar com os novos
“sujeitos” da culinária (homens principalmente) e a transformação da cozinha em
parte nobre da casa. Uma evolução cultural ou nova sedução pelo paladar? Pela
falta de emprego e outros problemas sociais que enfrentamos, surge uma figura
polêmica no universo machista brasileiro: o homem doméstico. Como muitos, a sua
mulher teve que assumir os compromissos com a casa e os filhos. Você sente uma
mistura de complexo de inferioridade com doses de frio, que lembra medo e
insegurança. Um homem que hiberna, feito o urso polar. Você treme nas bases!
O frio faz evocar nomes como massas,
assados, vinhos e outras guloseimas, ou iguarias. Recentemente, o destaque que
vêm ganhando sobre a ajuda do homem nas tarefas da cozinha, mudou o conceito
tradicional no reino do forno e fogão. Até algum tempo atrás a mandatária deste
reinado era incontestavelmente a mulher. O cetro da rainha do lar não era mesmo
o rolo de macarrão? Era ela a destinatária dos livros e manuais de cozinha,
seguindo as estratégias de vendas das editoras. Nos últimos anos, contudo,
parece que a cozinha, seus sonantes utensílios, vêm mudando de mãos.
“Antigamente”, um termo que não
gosto de falar porque lembra coisa antiga, nas festas, as mulheres trocavam
receitas. Agora, são os homens que estão interessados em culinária, muito mais
do que as mulheres. Se os homens passam a público da literatura culinária são
eles, também, que mais aparecem na própria mídia como cozinheiros, mudando
inclusive, novos “sujeitos” da culinária que são, o tom adotado nas receitas: o
tom impessoal com verbos no infinitivo (característica que deliberadamente
omite o ou a agente da cozinha) vem sendo substituído pelo charme da primeira
pessoa do singular, no caso do colunista Silvio Lancellotti, autor do Livro dos
Molhos.
A presença dos homens nas colunas de
jornais e na televisão, não apenas comentando restaurantes, mas sugerindo
cardápios e apreciando ingredientes, demonstra que a cozinha não pertence mais
à área dos fundos da vida contemporânea. De fato, os projetos de apartamentos
nos grandes centros estão privilegiando a cozinha como espaço altamente
tecnologizado e eficiente. A cozinha hoje, é um anexo da sala e não mais o
esconderijo dos escravos. A área destinada a ela é pequena, mas seu lugar é o
coração da casa.
Embora não soe como novidade que os
homens andem trajando aventais de matelassé e se havendo com escumadeiras e
espremedores de alho, na verdade eles dominam o espaço da culinária há séculos.
No reinado de Luis XV se distinguia “a cozinha da cozinheira”, feita de
conhecimentos práticos e de tradição familiar, e a cozinha do cozinheiro, com
ênfase na invenção e na reflexão”. O ato generoso de cozinhar produz a
felicidade não só de comensais, mas, também, de cozinheiros. Como mostrar os
dotes culinários demonstra um ato pequeno de arrependimento e necessidade, de
nos redimir, perante os séculos de violência e desvalorização da mulher. Não
pode ser outro, senão, um sedativo para a complexa, hipócrita e infeliz
sociedade dos machos.
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