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O som e a imagem do País










O crescente medo pela sinceridade
em nosso relacionamento social








            O que será que está mudando nesta nossa moderna sociedade de consumo? O brasileiro, de uns tempos para cá, vem deixando de cantar no chuveiro? Durante milênios o homem acostumou-se a unir o seu idioma com o ritmo da música. Foi a cultura do consumo e do vencer na vida que determinou que o hábito de cantar não servia. A maioria das pessoas – por medo de ser chamadas de “sonhadoras ou bobas” – perderam sua consciência intuitiva. Distanciaram cada vez mais de nossa origem”. Por outro lado, minha gente, cantar exige profundas técnicas. Poucos têm o dom. Poucos percebem o tom certo. Como interpretar dentro do ritmo da canção?
            O mundo hoje está mais complexo e as gerações atuais sem tantas esperanças. O clima é completamente diferente: as pessoas estão muito interessadas em se estruturar do que em se expressar. Uma das principais modificações foi o crescente medo pela sinceridade em nosso relacionamento social e, consequentemente, a aceitação da mentira, da representação hipócrita, como norma natural de conduta na sociedade. Parecem códigos quase indecifráveis. Ficamos coniventes e egoístas, usando uma linguagem concisa e cheia de onomatopeias, como das histórias em quadrinhos.
            Talvez seja apenas medo, mas, simplesmente, que parte dos brasileiros ouve a música “dor-de-corno” ingerindo bebidas e drogas químicas como escapismo de uma existência vazia, para suprir suas frustrações, ou cheios de si? Como reflexo, o crescente aumento de pacientes com distúrbios emocionais nos hospitais psiquiátricos, uma das causas da baixa autoestima se refere à queda do padrão social aliada à depressão aguda. É em nível do sertanejo universitário que artistas fazem da “dor-de-cotovelo” não apenas o tema de sua decepção, mas, também, a essência da criação. Não se deixam aprisionar na teia de seus sentimentos: antes fazem de seu canto o universo onde pulsam de forma a poderem ser reconhecidos pelos que os ouvem. A observação do cotidiano permite constatar esses opostos, sobretudo nas manifestações artísticas (como o samba-canção, o bolero, o tango e o sertanejo universitário atual). É comum dizer-se do indivíduo que ama e se vê correspondido como ele se torna mais pleno de possibilidades, como se sente estimulado em sua capacidade criadora; e, por outro lado, como se sente empobrecido, carente, quando se vê frustrado em sua ambição amorosa.
            Assim influenciados, os fruidores do gênero “fossa” são bloqueados, em sua própria capacidade interpretativa, a evocarem suas experiências e advogarem a causa do amor plural. A música dor-de-cotovelo mergulha os homens nos tormentos do inferno, na derrota ou morte. Sempre que pensamos numa canção de amor frustrado, supomos alguém enamorado e que um agente se interpôs entre ele e o objeto de seu amor. Colocamo-nos, habitualmente, no lugar do amante para quem, mesmo que seja a pessoa amada que promoveu a decepção, essa atitude é totalmente alheia (e adversa) a seu sentimento. Tem como único efeito deixá-lo em estado de carência afetiva.







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