Opressivos laços familiares
Max Brod acertou ao incluir a Carta
ao Pai entre as obras literárias de Franz Kafka. Nela, presentes o mesmo clima
opressivo que caracteriza sua obra em geral e o mesmo tom metálico sustentado
pelo enunciado em que a compulsão organiza um universo onde se acumulam
destroços, sem falar nos temas como a culpa, o autoritarismo, a perseguição,
também aqui presentes.
É verdade que o texto apresenta a
peculiaridade de ser uma carta. Nela, Kafka faz uma avaliação de sua vida
inteira marcada, segundo ele, pelo jugo tirânico da figura paterna. Hermann
Kafka, comerciante judeu, com seu egoísmo bruto, sua mentalidade arrivista e
sua negligente vulgaridade, teve uma ampla – ainda que involuntária – parcela
de responsabilidade na construção da autoimagem de fracassado que Kafka deve
ter carregado ao longo da vida.
Convém realçar, contudo, a carta
lida com registros de memória e do que Kafka se lembra é altamente revelador, não
é mais revelador do que aquilo que ele esquece. Nesse caso, a imagem do pai é
sempre uma imagem parcial e facciosa captada pelo filho intimidado e
hipersensível, numa rede de relações familiares, onde as expectativas de pai e
filho se frustram: o pai, certamente, queria ter tido um filho forte e corajoso,
e o filho um pai amoroso e compreensivo.
À certa altura da carta, Kafka
atribui ao convívio atritado entre ambos o resultado dele ter desaprendido a falar,
em contrapartida ao pai que era eloquente e ótimo orador: “Na sua presença...
adquiri um modo de falar entrecortado, gaguejante, para você também isso era
demais, finalmente silenciei, a princípio talvez por teimosia, mais tarde
porque já não podia pensar nem falar” . (página 22)
Se é verdade que, do ponto de vista
dos conteúdos, a carta trata da opressão do pai que cala o filho, a própria
carta é um texto onde o filho cala o pai. Quem tem o domínio da palavra, do
juízo, da argumentação, das ponderações, é o filho que, inclusive, usa do
artifício de selecionar e citar as falas do pai nos exatos momentos em que elas
servem para corroborar um argumento seu. Desse modo, as falas citadas
atribuídas ao pai não chegam a instituir um interlocutor no interior da carta,
sendo tragadas pela força argumentativa e de composição de um discurso que ao se
referir ao outro, estrategicamente o omite. Assim, a última palavra é a do
filho que pretendeu enredar e paralisar a violência mítica do “Pai”,
metamorfoseando nestas palavras: “Às vezes imagino um mapa-mundi aberto e você
estendido transversalmente sobre ele. Para mim, então, é como se entrassem em
consideração apenas as regiões que você não cobre ou que não estão ao seu
alcance. De acordo com a imagem que tenho do seu tamanho, essas regiões não são
muitas nem muito consoladoras...” (página 68)
Mas, Kafka, ao rever, resgatar,
refazer a própria história ou seja, em última análise, ao se autoengendrar,
ser, enfim, seu próprio pai, apodera-se de seu passado, seu presente e, porque
percebeu que está falando de si mesmo. Depois de imaginar que resposta o pai
lhe daria à “Carta”, apresenta-lhe uma tréplica final, objetivando que aquela
réplica tinha sido escrita por ele mesmo, Kafka. Afinal, quem e de quem ele
falava, senão a ele e dele mesmo, Kafka? O pai real ou o imaginário, o filho
real ou o imaginário, não importa, são formas de eu me resgatar a mim mesmo –
e, por identificação ou por intuição, os publicitários sabem disso muito bem:
quando querem mexer com nossas emoções, falam de pai e filho aos anúncios,
cutucando nossos núcleos neuróticos.
Por isso, nem vivendo, nem
escrevendo chegaremos a responder à pergunta (O que é um pai?), por mais que
possamos caminhar na recriação libertadora da relação pai-filho, só nos resta,
porém, usar a literatura como um meio para expressar o desequilíbrio causado pela
sociedade opressiva em que vivemos.
CARTA AO PAI
Título original: Brief an den Vater
Franz Kafka
Tradução
de Modesto Carone
Editora
Brasiliense
5ª
Edição
79
Páginas
1993
São Paulo
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