De tanto emergir evaporei-me. Como
mergulhador, sondei-me e deixei-me submergir e vivo pensando se sou profundo ou
raso. Um sopro de vida no olhar mostra o claro enigma da pegomancia no abismo
refletido no espelho d´água a minha face contempla o calabouço. Nunca me
realizei como Caio Pego fitando o céu.
Não
trabalhava como alguém que trabalha para viver, trabalhava como alguém que nada
mais quer se não trabalhar, porque como ser vivente não se dava nenhum valor,
só desejando ser considerado como criador, vagueando, de resto, em cinza e sem
ser notado, como um ator sem sua maquilagem, que nada é enquanto não tem o que
representar. Trabalhava silenciosamente, recolhido, invisível e cheio de
desprezo pelos pequenos para os quais o trabalho era um enfeite sociável, os
quais, fossem pobres ou ricos, se exibiam selvagens e rotos ou luxavam com
gravatas pessoais, que em primeira linha intencionavam ser felizes, gentis e
levar uma vida artística, desconhecendo que as boas obras só se formam sob a
pressão de uma vida dura; que aquele que vive não trabalha e que é preciso ter
morrido para ser um completo criador.
( ... )
A alma
andarilha de Caio Pego olhava e seu peito ficou dilacerado. A atmosfera da
cidade, este leve cheiro pútrido de química e lama, do qual se sentira tão
impelido a fugir, respirou-o agora em fôlegos profundos, dolorosamente
afetuosos. Era possível que não soubesse, não pensasse o quanto seu coração se
prendia a tudo isto? O que hoje de noite fora um meio lamento, uma leve dúvida
sobre a exatidão de seu ato, transformava-se agora em aflição e dor reais, em
um tormento de alma tão amargo que lhe punha os olhos cheios de água; tormento
este, dizia a si, que não fora possível prever. O que achava tão difícil de suportar,
sentindo mesmo, às vezes, completamente intolerável, era evidentemente o
pensamento de que nunca mais veria o mar, de que esta era uma despedida para
sempre. Pois como pela segunda vez se revelara que a cidade o punha doente,
como, pela segunda vez, tinha de abandoná-la às pressas, tinha de encará-la, de
agora em diante, como um lugar impossível e proibido para ele, não estava à sua
altura, e procurá-la de novo teria sido irrisório. Sentiu mesmo que, embarcando
agora, seria impedido pela vergonha e teimosia de algum dia rever a cidade.
( ... )
Caio Pego
cobriu a testa com sua mão e fechou os olhos que ardiam porque dormira pouco.
Pareceu-lhe que nem tudo era como de costume que começava a alastrar-se uma
estranheza sonhadora, uma desfiguração do mundo para o esquisito que talvez
ainda pudesse ser detida se escurecesse seu rosto e tornasse a olhar. Neste
momento, porém, teve a impressão de movimento e, abrindo os olhos com susto
insensato, notou que o pesado e escuro corpo do navio do destino se afastava
vagarosamente do cais. Por polegadas...
Despiu-se
de alma e espírito, deitou-se e apagou a luz. Murmurou dois nomes dentro do
travesseiro, estas poucas, castas, nórdicas sílabas, que designavam sua
verdadeira e primordial espécie de amor, sofrimento e felicidade, a vida, o
sentimento simples e terno, a pátria. Olhou para trás, para os anos que haviam
passado até aquele momento. Pensou nas dissolutas aventuras, sensuais, dos
nervos e dos pensamentos que tinha vivido, viu-se corroído pela ironia e pelo
espírito, isolado e tolhido pelo reconhecimento, meio destruído por febres e
calafrios de criação, indeciso e em luta com a consciência, entre fortes
extremos, atirado de um lado para outro, entre a santidade e o ócio, finório,
empobrecido, esgotado por frias e artificiais exaltações, perdido, consumido,
atormentado, doente... – e soluçou de arrependimento e saudade.
À beira do
precipício ficou parado de cabeça baixa, desenhando figuras nas pedras com os
olhos. Ali ficou em pé durante um momento o rosto voltado para a distância.
Separado da terra firme por larga faixa dos companheiros, da família, dos
colegas de trabalho, do ar, da água, entre outros elementos químicos por um
capricho orgulhoso, que vagueava, uma imagem altamente distante e desligada, com
o cabelo esvoaçando, lá fora do mar, no vento, de frente ao nebuloso ilimitado.
Novamente parou para a espreita. E repentinamente, como sob uma lembrança, sob
um impulso observa ali, como em outra oportunidade estivera, quando pela
primeira vez, este olhar cinza-alvorada correspondera encontrando o seu. Sua
cabeça seguia vagarosamente os movimentos daquele Caio Pego que andava lá fora;
agora se ergueu como que de encontro ao olhar, e caiu sobre o peito, de modo
que seus olhos viam por baixo, enquanto seu rosto apresenta a indolente
afetuosa e meditativa expressão do sono profundo. Mas pareceu-lhe que o pálido
e gracioso psicagogo lá fora lhe sorria, lhe acenava, como se flutuando na sua
frente para a imensidão auspiciosa. E, como tantas vezes, levantou-se para
segui-lo.
Dias
passaram até virem em auxílio do que caíra na cratera. Comunicaram para uma
equipe de resgate aéreo. Durante vários dias o tempo estivera coberto e
chuvoso; agora, o céu estendia-se brilhante sobre o mar, a terra e o penhasco,
como feito de uma seda encorpada, azul-pálido, atravessado e rodeado por nuvens
translúcidas de vermelho e ouro; o disco solar levantava-se solene sobre o mar
cintilante e crespo, que parecia estremecer e se inflamar embaixo dele.
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