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A reativação poética dos mitos












          Os deuses vivem. Nossa solicitude pode torná-los presentes. Não é mera recordação, é magia ao enunciar que, nomeando, invoca forças e qualidades, sob cuja proteção então nos encontramos. Grécia, paisagem interior: plenitude de vida, luz e festa da alteridade que nos habita. Há uma Grécia imortal, incorporada em nós. Sua sacralidade antiga resiste ao tempo e vibra nas ruínas de Delfos, nas pedras do templo de Apolo, no vale de Agrigento.
            Numa época da morte de Deus, “tempo de carência” e de ausência do sagrado a minha poética renova a atenção aos mitos gregos enfatizando que os deuses vivem em nós. E que a poesia é via de acesso ao ser, dádiva, na palavra de um outro inefável em si mesmo. Walter e Rudolf Otto, Carl Jung, Kerényie e Mircea Eliade abordam, dos pontos de vista filosófico, psicológico e antropológico a essência da mitologia. Que dizem sobre os mitos e os deuses? Dizem o mito vivo, buscam não só descrever, mas evocar e invocar o tempo e o espaço sagrados.
            Os meus poemas buscam reativar os mitos, contém as forças invocadas, sopro do espírito. Descrevo, como nos hinos órficos, os deuses e sua proximidade, narrando a trama de sua história essencial, abordando sob um ângulo privilegiado o núcleo do mitologema ou um momento de vida do deus, os poemas colocam-se sob a égide do que é invocado: tornam-se receptáculo da vida mais plena, tematização de sua presença.
            As grandes deusas são celebradas. Levam a pensar o que é o feminino e sua tarefa: “magnificar a vida”, no dizer de Walter Otto. Qual o sentido do feminino, na Grécia? Na perspectiva de Otto, o feminino expressa a vida magnificada, a transfiguração da energia vital, a transcendência da brutalidade do cotidiano. Sua esfera é a do corporal, do sensível, do concreto, da aparência, está em relação com o mundo da matéria e das forças originárias, é expressão do sagrado no reino elementar. Elas são a vida e a morte, destino e grandeza, devem ser continuamente repostas. Esta grandeza intemporal expressa o encontro com a força do ser, uma vez que a figura humana, na Grécia, é uma imagem do infinito. Na multiplicidade da sua manifestação, as grandes deusas representam a unidade do sagrado.


Ruptura e direção ao sagrado


            A poesia ronda o tempo todo as fronteiras do sagrado. A busca do sagrado tem isso de original e totalmente inédito em nossa cultura de raízes judaico-cristãs e forte embasamento contrarreformista: é a procura do sagrado na esfera do paganismo. Frequentemente, esquecemo-nos de que o sagrado nunca foi monopólio do judaísmo e do cristianismo, ou de qualquer religião monoteísta. O solo do sagrado, no qual nossa cultura lança as primeiras raízes, começou na Grécia, com o politeísmo do qual judeus e cristãos tanto se envergonham, e consegue expressão, ou melhor, ganha hierofonia, na mitologia grega, com sua florada de deuses e deusas aurorais ocupados em suas tramas arquetípicas pautando a conduta dos humanos no curso da vida e da morte. Aos olhos do poeta não existe fronteira entre os deuses pagãos e o Deus e os santos cristãos. Paganismo e cristianismo observam perfeita continuidade na urdidura prodigiosa do unus mundus. Na poesia de o poema é a reativação dos mitos: contém a força invocada, sopro do espírito. Com a poesia se insinua em nossas letras a Grécia órfica, inspirada não no culto da forma perfeita, como em Olavo Bilac, mas na proximidade e na pulsão dos deuses renascidos das cinzas dos esconjuros e do esquecimento.
            A apreensão desta identidade é privilégio: o maravilhoso se manifesta àqueles que o escutam e o artista é quem pode decifrar o fundamento do acontecer. Todos os deuses têm a mesma natureza: são imortais e sem idade, beleza eterna, esplendor e sabedoria. Via de acesso a uma sacralidade arcaica, os poemas anunciam o futuro: a larga tarefa, para os humanos, da busca de um ser-mais. A procura empreendida é uma ruptura com a religiosidade comum, pouco comprometida, do homem contemporâneo. Recusa também a expressão da religiosidade massificada, emocionalista e superficial que encontramos nas manifestações correntes.
            O mundo da origem é ainda o universo do amor, estreitamente ligado ao mundo da morte. E enquanto amor, doçura e graça, Afrodite, o desabrochar do cosmos. O feminino é, pois, a síntese entre a origem e o novo, a deusa mais venerável, a virginal Artemis; a totalidade, o fundo misterioso do ser. É este mistério que os poemas oficiam: narrando o mito, ou um aspecto privilegiado do mito, torna viva a alteridade que nos apela do fundo dos tempos, da nossa axial tradição: a grega. A Grécia: mais que um país, uma civilização, um momento histórico, é o instante Kairico, axiológico, proposição de paradigmas do vir-a-ser-humano, em nosso tempo. É esta dimensão, não apenas histórica, mas metafísica, da Grécia que Eliade, Otto e Kérenyi, assinalam.



Medéia, a grande mãe,
terrível medusa,
com teus grandes braços
imperialistas,
árvore de mil ramos, as relações
humanas,
imenso polvo que sufoca,
as folhas, os frutos do ventre caem
perdidos na alta noite eterna,
catedral da nova ordem.

( Relatório do Mundo Lacrado, Página 37,
Cobra de Vidro, São Paulo, 2012. )


Essa força do desejo forma
pontes de relâmpagos
que nos enchem de magnetismo radiante.
Embriagados pelo encontro de Eros e Psiquê,
as carnes vagueiam sob um céu de estrelas,
rodopios na própria essência do verão,
dois pomos, as duas bandas do sol.

Querer o desejo concreto
dopa de coragem como o astro-rei,
escorre o prisma cristalino,
sumo da doçura que se confundia
ao tocar as duas faces risonhas,
pedaços de estrelas esfriadas,
reflexo gêmeo de Hipnos e Thanatos.

( Desejo Solar, Página 69, Cobra de Vidro, São Paulo, 2012. )


Seja pirata com espírito de aventura
na carne, beba o vinho de Baco, metáfora
do sangue, celebrante da vida!
Seja cavalo que banha nas fontes
do pulsar do coração, do tambor dos ritmos,
cachoeiras de luz reflete Exu que salta
brincando pelos reinos, com os Orixás
dançando na velocidade dos elementos puros
na encruzilhada de cometas.


( O Grito Amplificado de Munch, Página 73,
Cobra de Vidro, São Paulo, 2012. )


4

Gato,
como segredo de Narciso
que em tudo se inventa,
e enquanto contempla
a si mesmo, és um jogo
de beleza e caleidoscópio.

85

Para Georges Bataille
e a Grande Mãe

Seja titã, como elemento em fúria.
Esparrame o Eros clandestino
na bolha de vidro
do seu colo materno, o leite coalhado
da herança uterina de sonhos retalhados.

86

Em volta do umbigo, Édipo
prisioneiro cego, entre gritos, ecos
e raízes dos limites da carne
camuflados pelas nuvens da distração
nunca desfeitas.


Paganismo


Da alquimia da clorofila na matéria verde
as almas nuas correm abrindo portas
formando estrelas de pontas
no topo dos hemisférios de elementos
do ar, do fogo, dos raios, de trovões e relâmpagos.
Clareiam orientando os caminhos
pelas matas e florestas do pensamento secular
clandestino atravessa a moldura,
este desejo repleto de paganismo.
Saturnais do titã, do céu e da terra agrícola,
corre livre o paganismo no sábado.


( Fragmentos de KamiQuase Haicais, Guaratinguetá, São Paulo, 2015. )








            

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