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Um escritor com olhos na história




Pintura El Nacimiento del Fascismo (1945) de David Alfaro Siqueiros










            A Alemanha, esta pálida mãe da cultura, teve filhos excelentes. Thomas Mann (1875-1955) foi um dos melhores. Para György Lukács, “homem e escritor se fundem, na evolução artística de Mann, em uma combativa unidade”. É dizer tudo sobre alguém que fez da cultura e da razão sua “raison d´etre”, em uma época - que não acabou - onde isto absolutamente não era muito simples.
            A chave de seus textos deve ser buscada no espírito crítico que alimenta a cultura clássica alemã. Um dos seus personagens, Settembrini, expõe em “A Montanha Mágica”, publicado em 1924, todas as dificuldades dessa enigmática razão. A oposição Naphta-Settembrini, no romance, supera em muito as reflexões de Hans Castorp, afinal, a personagem central.
            Os escritos de Mann são um espelho da vida em sua riqueza - no capitalismo isso significa também um reflexo da miséria do mundo. Estas reflexões sempre foram objeto de críticas contundentes, especialmente de críticos de inspiração marxista. A principal objeção passa pelo seu presumível apoliticismo. Nada mais incorreto do que considerar Mann apolítico. Uma parte de sua vida foi passada em brigas com as ditaduras europeias em geral. Seus trabalhos têm um caráter profundamente histórico: do nacionalismo romântico dos primeiros escritos, Mann evolui rapidamente para uma tomada de posição crítica face aos totalitarismos que lhe vale um longo exílio com a ascensão do nazismo. Do livro “Reflexões de Um Apolítico” (1918) para o ensaio “O Artista e a Sociedade” (de 1952) vai uma grande distância.
            Se o humanismo não é tão perfeito assim - e afinal a tragédia da arte se funda na tragédia dos homens que a criam – em alguns momentos ele se supera. É verdade que a moral do autocontrole pode não ser de todo perfeita – e ninguém lê Nietzsche e Mann impunemente - mas afinal, porque a beleza deveria ceder frente a alguma coisa? E se o descontrole leva à morte – pobre Aschenbach, o erudito de “Morte em Veneza” - não foi Mann que inventou tão necessária desdita.
            Não se deve ler Mann com os olhos de um moralista com sinal trocado. Não se pense que a imaginação possa ceder frente a essa concessão à modernidade: Mann não tem nada de maldito. Nenhum autor lido é, em absoluto, maldito. O radicalismo de sua opção não deve dar margem à dúvida: não há outra escolha fora da cultura.
            Há também “Mário e o Mágico”, provavelmente uma das mais finas e sutis análises do fascismo – essa forma caricatural, debochada e cruel que a ditadura tornou na Itália – que já foi escrita. A história desse prestigitador que afinal tira da cartola não coelhos e pombos, mas pedaços de alma, e que joga com a massa, como se esta fosse algo maleável, é um retrato daquilo que o fascismo sempre viu nas massas.
            “Morte em Veneza” (1913) consegue juntar duas das mais preciosas criações da civilização europeia: Munique, essa maravilha perdida além das montanhas (não à toa Aschenbach vive no Schwabing - quem conhece esse bairro sabe a que nível a civilização pode chegar) e Veneza, a mais bela das criações humanas. Aschenbach somos todos nós.










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