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Mundo fragmentário, ilógico e caótico









Ezra Pound personificou o modernismo anglo-americano,
fundando o imagismo e o vorticismo








            Uma sucessão de erupções polêmicas e criativas é a síntese da vida do poeta norte-americano Ezra Pound. Ele legou uma obra plural – a crítica militante, as traduções, as duas óperas e, sobretudo, a poesia – um percurso de semeador, não se furtando a influenciar e patrocinar o talento alheio. Onde o reconhecia ou podá-lo, quando impostor. É essa trajetória que o poeta e crítico inglês Peter Ackroyd, biógrafo de T. S. Eliot, e autor de um romance biográfico sobre os últimos anos de Oscar Wilde, se incumbiu de registrar no breve volume ilustrado, organizado em 1981 para as Literary Lifes, Thames and Hudson, traduzido por Francisco Alves, e teve a primeira edição lançada pela Editora Jorge Zahar, em dezembro de 1991.
            Pound personificou o modernismo anglo-americano, fundando o imagismo e o vorticismo (teorias retrabalhadas pelo movimento concretista em meados de 1957, no Brasil.), reavivou o interesse pelos provençais e pela poesia oriental, através das traduções pouco ortodoxas, e de suas máscaras poéticas. Deu forma final ao poema do século em língua inglesa, editando The Waste Land. Mais do que permitia entrever a imagem de poete maudit que cultivava, il miglior fabbro, como o batizou Eliot, foi o homem capaz de dedicar a vida a construir um equivalente moderno da epopeia dantesca num mosaico de fragmentos que abarcasse tudo – a literatura, a história e o mito. Os Cantos, resultado dessa surpresa, provam que Ezra Pound caiu de pé na luta contra moinhos de vento.
            Mas o lado manqué (desperdiçado) do visionarismo poundiano por mais de uma vez voltou suas farpas afiadas contra ele mesmo, e o poeta correu o risco de ser abatido em combate. A biografia de Ezra Pound, de Peter Ackroyd, enfatiza seu apego característico pelas ideias simples e soluções definitivas, empenho em buscar a realidade por trás das racionalizações e chamar as coisas pelo nome, em suas duas faces. A renovação da poesia anglo-americana deriva diretamente da paixão que Pound defendia essas ideias, que marcaram a obra de T. S. Eliot, William Carlos Williams, Mariane Moore, do último Yeats, entre outros. Contudo, também o populismo ingênuo do poeta, sua propensão a abraçar o messianismo de doutrinas econômico-simplistas, a miopia em relação às consequências do fascismo e do antissemitismo se originam nessa mentalidade de “explicador de aldeia”.
            Ackroyd conseguiu no exíguo espaço do livro compor um retrato sóbrio e equilibrado de Pound. As imagens recolhidas, mais de cem, são tão importantes quanto o texto: da figura ideogramática realizada pelo amigo escultor, Gaudier-Brzeska, morto na Primeira Guerra, em que o rosto seguro e desafiador de Pound se destaca, ao quixotesco mago no fim da vida, olhar perdido e enrugado vagando por Veneza, tudo está registrado.



“O que amas de verdade permanece, /
o resto é escória / O que amas de verdade não te será arrancado”. /



            Num diálogo socrático, o poeta Archibald MacLeish fez a apologia de Ezra Pound e da poesia, sustentando que, independentemente, da visão de mundo do autor, Os Cantos se sustentavam como uma visão de mundo que revelava em seu fragmentarismo e falta de coerência o nosso tempo caótico. O fato é que só muita pressão, e sete anos depois, a acusação de traição foi retirada e Pound pôde deixar os Estados Unidos para não mais voltar. Até o fim da vida, as sequelas do internamento continuaram a se manifestar.
            Mesmo excluído o episódio do fascismo, por pouco, Pound não pagou com a vida as transmissões radiofônicas que fez em defesa do Fascio na Itália durante a Segunda Guerra. Mesmo assim, o preço foi alto: 13 anos de manicômio judiciário, condenado por traição pelos americanos logo após o fim da guerra. O apelo romântico da biografia do poeta não é pequeno: Seu avô era um self-made man, construtor de estradas de ferro que chegou a congressista. Seu pai, Homer Pound, funcionário da Casa da Moeda, mudou-se com a família de Halley para a Filadélfia quando Ezra tinha oito anos. Na Universidade da Pensilvânia, Pound estudou Letras Românicas e, recém-graduado jovem professor em Indiana, abrigou no câmpus uma amiga por uma noite. Ao escândalo e de missão seguiu-se a partida para a Europa, em 1908.
            Em Londres, seu passaporte para o meio literário é o volume A Lume Spento, que já mostra indiferença pelos padrões estabelecidos e forte influência da poesia dramática de Browning, além do gosto pelos provençais. Em pouco tempo, aglutina em torno de si Ford Madox Ford, Yeats, Richard Aldington, Wyndhan Lewis e James Joyce, colocando-os em contato com William Carlos Williams e Hilda Doolittle, estabelecendo o núcleo do imagismo. Pound conquistou neste período londrino (1908-1920) o papel centralizador do modernismo inglês, à frente do vorticismo, fazendo publicar Eliot e Joyce, exercendo sua crítica cirúrgica ao mesmo tempo que firmava sua própria poesia em torno da divisa make it new. Fazer de novo, renovar, inovar de maneira ideogramática, colocando lado a lado “cernes e medulas” de autores e períodos desprezados ou obliterados e revigorando-os. A tradução podia ser o sopro de vida (assim foi com os provençais, com Guido Cavalcanti, com os chineses), mas também a crítica por amostragem, que apresentava no lugar de julgar.
            Quando chega a Paris, já é autor de Lustra, das traduções de Propércio e de Li Tai Po, ótima poesia que capitaliza o pouco conhecimento das línguas-frontes a seu favor, e dos primeiros Cantos. Sua ópera Le Testament, baseada em François Villon, mais uma dezena de Cantos, seu poema de formação, o Hugh Selwin Mauberley, além da amizade com Jean Cocteau e Ernest Hemingway, e de um flerte com o dadaísmo, são os frutos que leva para Rapallo em 1904, quando deixa a França. Em Rapallo, os Cantos ganham novo impulso e a maior parte de seus textos econômicos e de crítica cultural são produzidos. A forte disposição antiburguesa de Pound encontrou então expressão na doutrina do Crédito Social do economista inglês Major C. Douglas (1879-1952), que condenava os financistas, especuladores e usureiros que fariam da moeda uma abstração distante das necessidades humanas concretas. Junto da vaidade e da piedade, a usura é o pecado maior condenado nos Cantos. O triste fim a que o declínio fascista conduziria Pound não o impediu de continuar sua obra até a morte, nem de voltar à Itália para acabar seus dias. “Que perdi meu centro combatendo o mundo. Os sonhos se chocam e se despedaçam e que tentei fazer um paradiso terrestre”.






  
EZRA POUND
de  Peter Ackroyd
Editora Jorge Zahar
Tradução de Francisco Alves
128 Páginas










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