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Rimbaud galês









Em seu último livro, um tom elegíaco de celebração da vida
combinado com a simplicidade das imagens poéticas







            A produção inicial de Dylan Marlais Thomas (1914-1953), fonte para muitos dos poemas futuros, foi guardada em cadernos, dos quais o poeta já se servia antes para a imitação de clássicos (Shakespeare, Milton, Blake e Hopkins). Neles, está registrado o aprendizado poético e o progressivo desenvolvimento de um estilo próprio que, tão logo foi trazido a público em Dezoito Poemas (1934), seu livro de estreia, financiado pelo jornal londrino Sunday Referee, demarcou sua diferença em relação à poesia hegemônica nos anos 30, engajada e se servindo de uma linguagem direta e acessível (W. H. Auden, Cecil Day Lewis). Os versos que lhe valeram o prêmio da página de poesia editada por Victor Neuburg e o volume elogiado por Edith Sitwell estavam marcados por uma sintaxe elíptica e uma valorização das imagens, elaboradas em teias complexas.
            O que mais chamava a atenção do meio literário londrino para o Rimbaud galês era a violência das suas imagens, cujo apelo dionisíaco enxerga o homem sempre como parte da natureza, ao mesmo tempo que confere a cada evento e processo orgânico uma ressonância cósmica. Vida e morte são encaradas como polos necessários de um mesmo processo de renovação do cosmos, processo tenso e traumático. O eu lírico se move num ambiente em que se multiplicam os líquidos vitais (sangue, esperma, seiva, líquido amniótico) mas, também, jorram os símbolos da esterilidade (gelo, sal, vermes, tumbas): “Quando o mar galático foi sugado / e revelada toda a secura do leito marinho”. Só se cria a partir dos destroços e “a força que impele a água através das rochas... seca o sussurro das correntes”.
            A partir da publicação de Mortes e Entradas (1946), o que chama a atenção não são tanto os poemas que tratam as atrocidades da guerra (como James Joyce, é provável que Dylan a considerasse mais um embaraço à sua carreira literária do que a enxergasse como um cataclisma mundial), mas o surgimento de uma nova dicção em que um tom elegíaco de celebração da vida se combina com uma simplificação das imagens.
            Desta lavra são poemas como o Conto do Inverno, que reaproveita o motivo mítico da visita do cisne a Leda, invertendo-o ao fazer um rouxinol amar um homem (“a ela se ergueu com ele florescendo em sua neve derretida”). Na Colina das Samambaias registra um mundo paradisíaco ameaçado pelo tempo, simultaneamente “verde e agonizante”, tempo carrasco que aprisiona o sujeito na história (a guerra, a morte), mas que acaba subjugado pelo canto (“embora eu cantasse em meus grilhões como canta o mar”). Em Na Coxa do Gigante Branco (leia os 12 primeiros versos do poema logo abaixo) a fertilidade invade um exército de mulheres exauridas pelo trabalho em terra devastada. Todos esses poemas retornam suas obsessões em tom menos apocalíptico. Quando a poesia de Dylan Thomas caminhava para essa renovação, sua vida estava repleta de contradições insolúveis. O esgotamento nervoso e psíquico, somado à eterna falta de dinheiro, sobrecarga de trabalho (turnês americanas de leituras públicas de sua obra) além da bebida, interromperam a obra do poeta, morto em meio a uma das visitas aos Estados Unidos, em 1953.
            A tradução dos Poemas Reunidos (1934-1953), de Ivan Junqueira, a partir de uma edição anotada por Ralph Maud e Walford Davies, deixa clara a complexidade de sua obra. A sintaxe retorcida e elíptica, os jogos de palavras como once bellow a time (algo como “era uma voz” no lugar de “era uma vez”), além de um contínuo aproveitamento da ambiguidade semântica das palavras no entrelaçar dos campos de imagens tornam a tradução de qualquer poema de Dylan Thomas uma tarefa de Sísifo. Traduzi-los todos, sem acrescentar obscuridade indevida ao que por si já é complexo, é o mérito de Ivan Junqueira, ainda que muito do jogo sonoro de Thomas, artesão, se perca. Uma ou outra interpretação discutível das transgressões sintáticas de Thomas são consequência do tamanho da empresa, corrigíveis assim como as gralhas muitas, numa segunda impressão.








POEMAS REUNIDOS
Dylan Thomas
Literatura Internacional - Poesia
Tradução de Ivan Junqueira
Editora José Olympio
2ª Edição
392 Páginas
2003



Na Coxa do Gigante Branco



Por entre as gargantas onde cruzam muitos rios, gritam os maçaricos, /
Sob a lua fecundada no topo da alta colina de gesso,
E ali, nessa noite, passeio na coxa do Gigante Branco
Onde mulheres estéreis como rochas jazem quietas e ansiosas /

Por trabalhar e amar, embora há muito estejam prostradas.

Por entre as gargantas onde cruzam muitos rios, as mulheres rezam, /
Rogando na rasa baía para que se derramem as sementes,
Embora a chuva haja apagado os nomes em suas pedras cobertas de ervas,

E sozinhas no eterno e recurvo transcurso da noite
Elas suspiram com suas línguas de aves aquáticas pelos inconcebidos /
Filhos imemoriais da esmurrada colina feita em pedaços.




Tradução de Ivan Junqueira






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