“Meus poemas têm fome de humanidade e,
contrariando o poeta, podem dizer o que penso ainda que eu, através do
artifício da linguagem, induza o leitor a pensar que é ele que assim pensa. A
função do poema, originada nas fomes, é justamente provocar outras fomes. Meus
poemas têm fome do mundo que me cerca e das coisas que, de alguma forma, me
perturbam e desassossegam.”
( Da entrevista Sobre
poesia, ainda: Dalila Teles Veras,
do blog Contra tanto silêncio, de Tarso de
Melo. )
Para
comemorar sua vida e obra, a poeta Dalila Teles Veras lançou Setenta - Anos,
Poemas, Leitores (Alpharrabio Edições, 110 páginas, Santo André, São Paulo -
2016). Uma antologia de setenta poemas escolhidos dos quinze títulos publicados
pela escritora ao longo de 34 anos de intensa vida artística e ativismo
cultural. Os textos que ilustram as páginas foram carinhosamente escolhidos por
70 convidados (escritores e amigos da poeta) de diferentes idades (desde o neto
de Dalila de oito anos a outros com mais de oitenta) e de formações e
interesses diversos.
O cabedal lírico da poeta foi
reforçado pela leitura de muitos poetas portugueses e brasileiros. Trinta poemas
do livro trazem uma epígrafe de referência, a exemplo de Vias Oblíquas e Abismos na
pequena seleta abaixo. Princípios, temporais, horizontes, altitudes – assim
Dalila equaciona sua viagem, numa só voz. As epígrafes são pequenas
interferências, pausa para que os poemas respirem a diferença, que os conjuga, os
irmana, tanto quanto alguns poemas aparentemente isolados, tornam-se
paradigmáticos por excelência. Um estudo das epígrafes na poesia brasileira
moderna teria muito a dizer dos caminhos e descaminhos de nossa lírica – mas
isto é uma outra conversa, para outra hora, outro espaço.
Dalila Teles Veras, gosta de
exprimir, de modo conciso, o que vê e sente em poemas que oscilam entre a
inquietação, o tédio, a angústia e uma grande lucidez e capacidade analítica,
junto ao lirismo e à afetividade e, acima de tudo, à paixão movida pelo
comprometimento.
No entanto, Dalila é voz mais que
solitária em sua geração; voz condenada, diga-se de passagem, a uma feliz
solidão. A sua erudição e a sua, se assim posso chamar, desenvoltura rítmica a
mantém isolada dos grupos mais recentes. Neles, a artificialidade, o excessivo
das paráfrases e das colagens, que nos últimos anos têm tornado a poesia um
exercício cansativo e repetitivo, sem força e sem rumo, fizeram de nossa
paisagem poética um campo desolado. Foi exatamente a publicação de Setenta, que
reverte esse quadro. Com esse livro recuperamos o ânimo de celebração,
atualmente tão pouco presente em nossa poesia, e que só era mantido pelo vasto
grupo que estreara nos anos 50 e 60, contrário a todos os ismos do período (sem
contar com alguns remanescentes desse mesmo grupo, já nos anos 70 e 80, poetas
ainda à espera de uma reavaliação à altura de sua importância), Dalila, talvez
seja o nome que mais se destaque na geração que tem hoje de 60 a 70 anos de
idade.
Com ela, estamos de volta à terra
magnética da poesia, da poesia genuína e eterna. Seu espírito, claro, é
totalmente avesso ao neoparnasianismo disfarçado de neossimbolismo que é moeda
vigente entre os novos, má prosa disposta em versos, ou das degenerescências
pós-concretistas ou pós-cabralinas que assolam um vasto segmento da poesia
contemporânea. Há exceções aí, mas são raríssimas.
Para a poeta crivada de sons, rostos,
imagens, aromas e paladares, a palavra é carnal, é volúpia do verbo, é encontro
e pulsação. A palavra a serviço da poesia, uma poesia que raia o mediúnico,
onde Dalila é a pastora da iluminação do verbo. A sua inteligência, a sua
erudição e o seu fascínio pelo que há de humano na história do homem a
aproximam da verdade das coisas mais simples. São atributos que em poeta de
baixa voltagem fatalmente serviriam apenas de adorno. Sobretudo porque a
simplicidade, em poesia e em tudo o mais, é trunfo só dos grandes.
III
Solitária
garça
mergulha
no rio
solitário
homem
atira
a tarrafa
fatalistas,
bem sabem ambos
da
incerteza do gesto
( Página 69 )
8 de março
Deram-lhe
um dia
apenas
um dia
(devem-lhe
séculos)
Na
tentativa de remissão
as
flores constrangidas
(homenagem
tardia)
( Página 54 )
Mater dolorosa
ventre
crescido de miséria
murcho
ventre – lembrança
sexo
destituído de prazer
ventre
inflado de ausências
ventre
que não mais protege
ventre
que não mais alimenta
sua
própria matéria
( Página 67 )
As faxineiras do edifício
Surpreendentemente
(não
obstante, os dez mil, quatrocentos e trinta e um degraus,
os
oito mil, trezentos e vinte metros quadrados de piso, as
quatrocentas
e quinze vidraças e as três toneladas de lixo à
espera
de variação, transporte e limpeza)
cantam...
( Página 38)
Elemento em fúria
Ao
pé das antigas tabuletas
grafitadas
de sangue e esperma
foi
desatrelada a canga
-
campo de palha e fel
campesina
despiu
as presunções
sobraçou
as certezas
deter
minou
indignar-se
riscar
o fósforo
centelha
restauradora
-
campo de figos e mel.
( Página 57 )
Vias oblíquas
“Porque parte tudo um dia
O que nos lábios ardia
até não sermos ninguém”
Paixões
Diagonais,
Miguel Ramos / João Monge
depois
que a mulher voejou
levando
consigo a
claridade
dos cômodos e
décadas
coabitadas, o
marido,
no escuro
ensimesmado
deixou
o cabelo crescer, o
mato
tomar conta dos
canteiros
o
pó
cobrir móveis e assoalhos
sete
luas após a mulher
levar
consigo a sonoridade
da
alcova, o marido
às
claras e resoluto
reagiu
engaiolou
dez pássaros e
registrou
em cartório o
certificado
de propriedade
dos
novos moradores com
direito
a concertos privados
( Página 37 )
Abismos
“Dizem as velhas da praia que não voltas
São loucas!
São loucas!”
Barco
Negro,
David Mourão-Ferreira / Caco Velho / Piratini
diante
de seus medos
um
homem
com
toda a fragilidade
de
um homem
(na
esquina do viver onde
a
luz encontra as trevas e
prenuncia
tormentas)
um
homem
que
se recusa
assistir
ao embarque
protagonizar
a despedida
em
desespero, agarrado
ao
cordão, em vias de
um
homem e seus abismos
incontornáveis
( Página 30 )
Bordadeira
É
de risco esse teu ofício
urdindo
pontos e riso
a
conversa andando à roda
e
os planos traçados no bastidor
Florista
do tecido
enfias
sonhos na agulha
traças
linhas no destino
fatal
e premeditado fiar
A
vida! Será ela em ponto cheio?
ou
despontada de sombras e granitos?
( Página 60 )
SETENTA
anos, poemas, leitores
Dalila
Teles Veras
Poesia
Brasileira
Alpharrabio
Edições
112
Páginas
Santo
André – São Paulo
2016
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