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A ficção onírica de Gide


Auto-retrato de 1924 por Paul Albert Laurents







Poeta da apoteose dos instintos







 

Num belo ensaio publicado em Munique, em 1947, sobre os fundamentos da filosofia iluminista, Heinz Maus diz que “ao materialista não interessa a razão absoluta e sim a felicidade, inclusive em sua forma proibida: o prazer”.
Este tema o da proibição do prazer (Die Verpoenunc dês Genusses), que é um dos tópicos fundamentais da antropologia crítica de Horkheimer, importa em última análise, no sacrifício do indivíduo, a ele imposto pela ordem social repressiva. Muito antes do autor da “Kritische Theoris”, e só precedido no universo cultural contemporâneo, por um dos grandes herdeiros do iluminismo – Marx -, Gide se insurgiu contra os cânones morais mutiladores da vida. Os Frutos da Terra, escrito em 1897, dá magnífica expressão a esta recusa, ao mesmo tempo em que assume a feição de manifesto a favor da “sensualidade emancipada”, segundo a bela definição de Alfredo Schmidt.
Na verdade, mais do que um hedonista, como sempre pareceu à maioria de seus críticos, senão que à sua totalidade, Gide foi adepto do to makarion, espécie de bem-aventurança terrestre, que nos compensa ou mesmo poupa dos “ferimentos da vida” (vulnera vitale) referidos por Lucrécio.
Esta postura diante da vida, resultante da repulsa de Gide pelo código ético da família francesa que ele tanto odiava, vale dizer, de sua rebelião contra a ética tradicional, levou-o a ser considerado um eterno adolescente. Com efeito, Os Frutos da Terra é a lírica manifestação de um homem entrincheirado na defesa da vida sensorial, apoteose dos instintos de um pensador e de um poeta que sabe que o homem, antes de ser um animal social, e um animal natural, consoante à deslumbrante lição dos manuscritos parisienses de Marx. Foi precisamente esta visão do homem como sujeito de sua liberdade que conferiu a Gide uma assombrosa autoridade humana e literária, como acentua um dos seus críticos alemães. Esse rebelde só se dobrava a uma obediência ética: a que reclama do ser humano fidelidade a si mesmo. Esta exigência é, na opinião de Rudolf Kassner, a base da universalidade humana de Gide. “Percorri – disse – certas vias do pensamento que o espírito mais ousado não pisaria sem estremecimentos.” E pela boca de Teseu: “Agrada-me pensar que os homens que me seguem, graças a mim, reconhecer-se-ão mais felizes, melhores e mais livres. Contribuí, com minha obra, para a salvação da humanidade futura. Minha vida está consumada. “Tal passo do “Theses” remete ao final de Os Novos Frutos da Terra: “Ninguém se conforma sem covardia com todo o mal que depende dos homens. Deixa de acreditar, se jamais o acreditaste, que a sabedoria está na resignação; ou deixa de pretender a sabedoria. Camarada, não aceites a vida tal qual a propõe os homens. Não cesses de te persuadir que ela poderia ser mais bela, a vida, a tua e a dos outros homens, não uma outra futura, que nos consolasse desta e nos ajudasse a aceitar a sua miséria. Não aceites. Quando começares a compreender que o responsável por todos males da vida não é Deus, que os responsáveis são os homens, não te conformarás mais com esses males. Não sacrifiques aos ídolos.”
E do ponto de vista estritamente literário, que é Os Frutos da Terra? Pode ser visto como uma novela indireta. Mas a marca do ritmo whitmaniano autoriza uma outra classificação: a do poema em prosa, ou, como dizem os alemães hymnische prose. A prosa hínica, cuja validade estética os representantes da crítica pedestre, no Brasil, batem com as patas no peito e negam.
Parafraseando Ralph Freedman, quando diz que a madeira de Rimbaud não pode evitar que seja convertida em violino, diremos que a prosa de Gide não evita a fatalidade da poesia. Esta conversão talvez decorra, em grande parte, de suas leituras de Goethe e de Nietzsche, as quais o levariam a uma visualização do homem fáustico (ver René Lang, André Gide et la Penseé Allemahde).
A visão goetheana faz com que tanto em Os Frutos da Terra, quanto em Os Novos Frutos da Terra, incorporado nesta edição, o poeta apresenta-se como legislador da vida. Já demonstrou Albert J. Guerard (“André Gide”, Cambridge, 1951), que a sombra de Lehrlinge Sais, de Novalis, projeta-se no lirismo de Gide, sobretudo no transparente lirismo de suas celebrações poemáticas dos frutos da terra. No pastoralismo gideano, digamos assim, repercute também a voz elegíaca de Virgílio, eis que a convergência da prosa hínica e da novela indireta termina conferindo a Os Frutos da Terra o estatuto de ficção onírica.










OS FRUTOS DA TERRA
André Gide
Coleção Grandes Sucessos da Literatura Internacional
Volume 10
Ficção
Tradução de Sérgio Milliet
218 Páginas
Editora Rio Gráfica Ltda.
Rio de Janeiro - RJ
1986










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