Capa do graphic novel The Spirit, de Will Eisner
Outro dia perguntaram-me qual era o livro da minha vida. Sem pensar muito, hesitando entre Onde Estivestes de Noite, de Clarice Lispector, e Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, respondi: Epifanias, de Caio Fernando Abreu. Mais tarde, pensando melhor, decidi: o livro da minha vida na verdade é O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway. Nada me comoveu tanto no cinema quanto aquela obstinada procura do velho pescador Santiago pelo grande peixe no oceano de mistérios e descobertas. É a história de um homem solitário na imensidão do mar, dia e noite, convivendo com suas mágoas, dúvidas, sonhos e pensamentos. Emaranhados de frases que ilustram a luta pela vida, no nebuloso e arriscado oceano, a confiança de um velho em alcançar seus objetivos e vencer seu maior obstáculo, pescar. O livro atingiu profundamente este leitor voraz, e fez com que refletisse sobre os obstáculos e desafios da vida. Então, pensei com meus botões: “Até que ponto podemos ultrapassar nossos limites”.
Mas se me perguntassem sobre o gibi da minha vida, eu não hesitaria um segundo. Esse exemplar chegou as minhas mãos, de maneira meio “achado por acaso”, num sebo. Eu devia ter uns 17 ou 18 anos quando revirava numa pilha de revistas em quadrinhos, de todos os gêneros, encontrei apenas uma revista em formato graphic novel: era The Spirit, de Will Eisner, se não me engano, editado pela Rio Gráfica Editora, meio amarelada pelo tempo, que devorei em poucos dias, fascinado.
O Spirit é talvez um dos exemplos mais bem-acabados de casamento texto/imagem na história da HQ. Essa autonomia de linguagem, entretanto, não exclui uma lista extensa de influências. Por exemplo: os pintores da cena americana dos anos 30, que retratam massas humanas ou flagrantes das grandes cidades, num clima que lembra muitas passagens do Spirit, como Reginald Marsh, Thomas Benton e Edward Hopper. Na literatura, encontramos em muitos autores um tratamento ficcional semelhante ao de Eisner em suas histórias: Zola e a descrição da vida na selva parisiense; Maupassant e suas figuras lamentosas; O Henry e seus fantasmagóricos personagens nova-iorquinos. Não podemos ignorar os autores de romances policiais, como Hammett e Chandler, com sua galeria de criminosos e mulheres fatais. Já foram citados, como influências de Eisner, Dickens, Gogol, Tchekhov e Steinbeck, entre outros. Na sua própria área de interesse, ele cita o Krazy Kat de Herriman, o Popeye de Segar e a obra de Alex Raymond.
Admirador do modelo literário do conto, Eisner limitou as histórias do Spirit a sete pranchas. Seu tema por excelência é a realidade trágica das metrópoles, os bandos de destituídos, os facínoras, as crianças abandonadas ou mal-acompanhadas, os pequenos funcionários e comerciantes, e muitas mulheres, em geral tão desprovidas de escrúpulos quanto espetacularmente sensuais. Os “contos” giram em torno dos sonhos e interesses dessas pessoas, das situações que vivem ou se veem obrigadas a viver, de sua calamitosa situação moral e afetiva.
Nos anos 70, seu trabalho também evoluiu no equilíbrio entre texto e imagem, adotando um arranjo menos tradicional dos quadrinhos e balões, utilizados apenas quando necessários para a harmonia da narrativa. Ao lançar Nova Iorque – A Grande Cidade, na década de 80, utiliza de cartoons ou crônicas gráficas, breve cenas de uma vida multifacetada. Eisner, no auge de sua maturidade como artista, explora com muito humor os símbolos de uma grande cidade: o metrô, as janelas, os becos, os bueiros, os moleques, os namorados, os músicos de rua, etc. Por uma série de razões, considero Will Eisner um dos maiores artistas do século 20. Sua contribuição para a linguagem dos quadrinhos, e também para a arte da narrativa em geral, foi decisiva. Ela exprime a maturidade e a legitimidade incontestáveis desta forma de arte.
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