Marcel Proust e os biscoitos de Madeleine
Como é antigo o casamento entre literatura, degustação e consumação. No ato de comer e beber, uma incorporação que gratifica, amplifica. Na literatura, o consumo sempre envolve um risco: o próprio leitor pode ser consumido. Entra em ação uma ginástica mental que consiste tornar desejável o texto, torná-lo impressionante por sua concisão ou seus adornos, deixar acessível até o limite do tédio, ou obscuro, quando se trata de delimitar enigmas. “O texto me deseja”, descobriu Roland Barthes. O consumidor, portanto, entra aqui como cúmplice, cupincha.
Quando se pensa em avaliação e degustação, tem um romance na ponta da língua: Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, uma história minuciosa do consumo das classes dirigentes européias. Mas, esse consumo parece soterrá-las. A forma e o sabor caprichosos, enrodilhados, do famoso brioche – a Madeleine – desencadeiam todo o livro e toda a memória do narrador. Os personagens de Proust, os Norpois (o diplomata), o próprio Swann, os membros da família de Guermantes, estão todos eles condenados a ser gastrônomos. Nessa espécie de “as classes dirigentes européias à mesa”, há um belo ensaio publicado num livro editado na França quando do centenário do nascimento de Proust. O livro é de 1971, portanto, há 42 anos. Houve, inclusive no Brasil, uma edição da Civilização Brasileira, hoje esgotada. Há ali todo um capítulo sobre a gastronomia em Proust, desde os assados da infância (são conhecidas as longas e mal-humoradas brigas da cozinheira Françoise com os fornecedores de aves em Combray) até as recepções dos Guermantes, estilo superposição de partos, aristocrático.
O que há de recepções, jantares, almoços no campo e na praia, não é brincadeira. Quem paga a conta, Proust nunca diz: no seu romance quase não há menção ao trabalho, embora ele tivesse certeza que o seu livro seria entendido não pelos “grã-finos, mas pelos eletricistas”. Há, contudo, uma cena famosa, na qual Proust, antena mais do que sensível da sociedade, antevê o que seria um outro banquete. Também no Ritz, em Veneza, durante um dourado jantar de verão, o narrador observa, por trás dos vidros que separavam o restaurante da rua, um crescente grupo de pessoas do povo olhando para os hóspedes. E imagina o que aconteceria se as vidraças quebrassem...
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