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No Olho do Ciclone, Estilhaços e Caos





Nascimento da Criança Geopolítica de Salvador Dali









“Chega de jogos da linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas.
Agora, é preciso encontrar a grande lei do coração, a lei que não seja uma lei, uma prisão,
 mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto.”

 ( Carta aos Reitores das Universidades Européias,
de Antonin Artaud )




Beto Lima





Era o ano de 1994. Aos 33 anos, Rubens Shirassu Júnior parte de Presidente Prudente, São Paulo, para confrontar com o universo mágico da cultura oriental, onde iniciou uma série de viagens, foi a sua palavra-chave, e pesquisou sobre a simbologia, os hábitos e tradições – assim, viajando com um sonho na bagagem do seu interior, de trem, em cada estação pela qual passou, curtindo a vida sem rumo, por todo o Japão, atrás de luas, lagos, antigas construções dentro da mata escura, descerrando as folhagens do Taoísmo, do Zen-budismo, das lendas, de famosos samurais e espadachins, estilhaços componentes de um misterioso e fascinante universo do caos sem fim, onde Shirassu Júnior busca lavrar as palavras do peixe, peixe espada, peixe lua ou como diz o poeta Paulo Leminski: a lágrima do peixe, o haicai.
Como os seus mestres japoneses, desenvolveu a arte da pintura, da ilustração com o uso da técnica do lápis-aquarela e adaptou as outras formas do maravilhoso mundo do desenho digital. Toda a sua vida se resume nestes poemas em miniatura, que diz infinitas coisas tendo pequenos meios. Os seguidores do haicai elevam-se a cada ano, e faz dele uma educação dos cinco sentidos.
Para recriar e penetrar nas culturas nipônica, latina e prudentina, com tanta paixão, determinação e dedicação, nada mais oportuno que passear como um turista aprendiz nestes fragmentos/radiografia da alma coletiva reflete-se o vínculo com as estações da natureza, do outro lado a divina, pura e cristalina. Andar com os pés franciscanamente. O gênero mais desconcertante do Japão. O império dos signos. Rubens Shirassu Júnior é doce-amargo, como o instante ou quando se abre uma ostra, rompe-se o ostracismo, e revela-se o encanto, a pérola.
É em boa hora, assim, que a Secretaria de Estado da Cultura publica seu Cobra de Vidro, reunindo o mais significativo que produziu entre os anos 80 e 90, numa seleção do próprio autor, que incorporam poemas como O Reino do Interno de intensa carga poética e dramática, um soco direto no estômago, onde ninguém sai ileso por seu caráter de denúncia e violência. A leitura em perspectiva só contribui para a afirmação da coerência de sua fala e da fidelidade a uma ascendência eletiva que tão fortemente o marcou especialmente com Freud, Nietzsche, os surrealistas franceses, os poetas japoneses medievais Matsuó Bashô e Kobayashi Issa, com seus hai-kais, os simbolistas, Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, William Blake, os modernistas brasileiros, como Oswald e Mário de Andrade, e portugueses, a exemplo de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
De fato, é na voracidade intelectual de Shirassu Júnior que se deve procurar a origem do seu discurso de alta tensão e densidade, sempre criativamente resolvido, mesmo quando a transparência dessas matrizes referências é excessiva, epígrafes de Roberto Piva, Allen Ginsberg, Charles Baudelaire, entre outros, como acontece em alguns trabalhos da primeira produção. Mesmo assim trata-se de uma antologia que não pode faltar na estante de quem realmente gosta de poesia.


* Escritor que reside em Mariana, Minas Gerais.

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