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Tempo Livre










Se o trabalho enobrece, como anuncia a sua ética,
por que desejamos sempre mais tempo para nos divertir?










Que Deus não tenha terminado a sua obra é perfeitamente compreensível. Afinal deu duro, sozinho, para entregá-la em apenas seis dias. Mas, e nós? Estamos trabalhando juntos há milênios e pelo que ouço dizer continuamos falhando nas tentativas de construir um mundo melhor. Aliás, só no século 20, por algumas passagens aliadas a fenômenos da natureza, a construção quase desabou. Falta muito, realmente, para entregarmos essa obra pronta. Agora, estou sabendo, talvez tenhamos que abandoná-la. E por um motivo que os deixará exultantes: o emprego vai acabar. Os sociólogos estão chegando – e com algum atraso – à mesma conclusão que os gregos antigos: nós não nascemos para trabalhar. E não nascemos mesmo. Eu vejo por mim: às segundas-feiras, precisamente na semana do Natal, sinto a maior dificuldade de sair da cama para o trabalho.
Durante séculos os nossos antecedentes foram na conversa de John Calvin e aquela turma da Reforma Protestante que consideravam a indolência pecaminosa e o trabalho virtuoso. Se o trabalho enobrece – como anuncia a sua ética – por que desejamos sempre mais tempo para nos divertir? Por que procuramos sair correndo do trabalho? Só pra ver o futebol, os jornais na TV divulgando as mazelas, os escândalos e corrupções no Brasil e as novelas?
Por que enfim a semana de trabalho está diminuindo? No início do século 21, refletiam alguns cientistas, nos Estados Unidos e parte da Europa se trabalhará somente 147 dias por ano. É justo então aguardar que daí para frente o trabalho continue diminuindo. Um pouco mais adiante trabalharemos apenas 100 dias e depois 78 e depois 54 e depois inverteremos o processo: trabalharemos nas férias – 30 dias – e folgaremos nos outros 335. O trabalho se transformará num hobby do fim de semana – veremos aquelas hordas de carros saindo na noite de sexta-feira para passar o sábado e o domingo no trabalho. Rasgaremos as nossas carteiras de trabalho. E terminaremos com o problema do desemprego. Ele não precisará ter nenhum tipo de preocupação. A não ser continuar desempregado.
Enquanto, porém, não entramos em férias coletivas, os sociólogos europeus e norte-americanos estudam técnicas para ajudar os trabalhadores das grandes cidades a preencher o seu atual tempo livre. Como não podemos ver os norte-americanos fazerem nada que queremos logo imitar, repetimos aqui a mesma pergunta: Como encontrar um meio de preencher o tempo livre que nos sobra? Antes, contudo, de encontrar um meio de preencher o tempo livre, é necessário que encontremos o dito tempo livre. Onde está o tempo livre? Para a esmagadora maioria da população brasileira o tempo livre está em falta.
Por que então não fazemos como Marcel Proust e, ao invés de procurar o tempo livre, não saímos atrás do tempo perdido? Todos nós dispomos de dois tempos (sem intervalo do primeiro para o segundo): o tempo fixo e o tempo livre. A essa divisão dá-se o nome de orçamento do tempo. Já o capitalista e consumista desenfreado, típico “escravo do trabalho e dinheiro” argumenta: - O meu orçamento, por exemplo, já estourou há muito tempo. Tempo livre, naturalmente.


Comentários

  1. Rubens, os funcionários públicos já estão caminhando pra esse estado ideal de coisas que vc pintou (trabalhar só dois dias por semana). Veja os juízes, por exemplo, que tem 60 dias de férias por ano, não batem ponto (feito os velhacos da assembléia legislativa de Sampa), e a escória de Brasília, que volta de suas "bases" na segunda-feira, começando na 3a. e na 6a. extenuados voltam pra casa. Lema pro Brasil de daqui a pouco: Brasil: um país que trabalha sustentando um que coça...!

    desculpe, ia colocar mais comentários mas o trabalho me chama!!!!!!!!

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