Pular para o conteúdo principal

Tarefas de guerreiro




Bacchus de Caravaggio











Sempre sob inegável suspeita das mentes institucionalizadas, manipuladas e vazias, por seu ângulo de visão muito objetivo e seu caráter pouco alegórico, o dionisismo e o existencialismo se mantiveram, contudo, nas últimas décadas, como uma das forças mais influentes do pensamento contemporâneo. Há muitas razões para isso, desde a vigência espetacular que conheceu no pós-guerra até sua tendência presente à revitalização, em face da evidência do fracasso de formas do pensamento mais intelectualistas.
A filosofia contemporânea chegou a uma complexidade verbal delirante e, na melhor das hipóteses insensata, cuja principal operação é a substituição sistemática do concreto pelo abstrato, do prático pelo teórico e da experiência direta pela elucubração mental. O pensamento jovem, enquanto corpo de plataforma, não está imune aos típicos vícios filosóficos de nossa cultura, no estágio atual de seu desenvolvimento, mas representa uma tomada de consciência, embora parcial desses vícios e uma sincera, saudável e, por vezes, apaixonada tentativa de negá-los. Do ponto de vista existencialista autêntico, o que importa é sempre a experiência direta, prática, concreta, embora ela se apresente, muitas vezes, reinterpretada pelo prisma distorçante do intelecto. Essa fidelidade à vida efetiva, isto é, à perplexidade original com que despertamos ao mundo, é a fonte da energia secreta do pensamento existencialista/dionisista. A mente jovem parece, pelo menos, examinar a si próprio, um ser vivo, e não abstratas ou totalizações conceituais arbitrárias e vazias.
A declaração de Jean Paul Sartre – “a essência do ser humano é a sua simples existência”, isto é, a liberdade arremessa-nos num buraco negro permanece atual no pensamento ocidental. Ela implica uma crítica radical a todos os tipos de codificações de valores, em leis, normas ou hábitos, em que usamos indulgência, insistentemente, na busca vã de uma segurança que não passa, na verdade, de mera imaginação doentia. A aparente necessidade de se utilizar a prática política para que possa se estabelecer um sistema razoável de convivência, não foi capaz de obscurecê-la. “A existência humana é, em si, radicalmente livre, embora cerceada socialmente por mecanismos de condicionamento que se multiplicam sem cessar. O ser humano, portanto é, em si, radicalmente livre, embora introjete esses condicionamentos de maneira mórbida e obsessiva. Estamos certamente submetidos a circunstâncias, condicionadas e que, nos marcam nossos limites como seres contingentes num mundo contingente.” – escreve Luís Carlos Maciel.
Hoje, mais do que nunca, a questão da liberdade é a chave das sete portas. Ela está no coração do pensamento jovem, o que evidencia a necessidade de um espaço. Este, em todos os sentidos. Dionysos, o deus do prazer, é apenas a base de nossa liberdade: é o material, o solo, sobre o qual se exercerão nossos atos pagãos que precisam ser provados em alguma manifestação artística contra o espírito determinista (o que caracteriza nossa época). O próprio, é teimosamente hostil ao fluxo natural da criação, às manifestações artísticas, antes de mais nada, uma experiência viva e com uma certeza interna. Contudo, os espíritos nefastos, adoradores da ciência, do Estado e das cartilhas stalinistas, temem o reconhecimento do caráter sagrado do nosso pensamento jovem; fosse pôr em perigo a ordem social, a moral familiar ou coisa parecida, quando, na verdade, só iria revelar-lhes a nudez do espírito claro, autêntico, naturalista e dionisista.
Cabe aqui, contra toda mornidão provinciana, hipócrita e farisaica do ambiente, um papel exato e oportuno no qual o nosso esforço permanente será o de obter o diálogo adequado entre a compreensão do passado e a promoção do futuro, entre a compreensão já amadurecida e a contribuição que apenas vai emergindo. Que não se tome tudo isso como uma receita milagrosa (e nossa), mas como uma benfazeja hipótese de trabalho. Há mais a fazer, entre nós do que simples e automaticamente elogiar ou investir em determinado segmento. Há que lutar por muitas outras coisas: por um máximo de informação e divulgação disciplinada em torno de nosso passado e presente, amealhando e documentando pouco a pouco a memória de Presidente Prudente, região oeste e Brasil, para redistribuí-la e revivificá-la; bem como das entidades representativas; pelo intercâmbio nacional e internacional o mais amplo possível, aproximando o que não pode permanecer afastado; a necessidade de fazer novas hegemonias, um lugar onde elas tenham como registrar o seu entusiasmo de intenções e críticas. E, sobre tudo isso, há que lutar pela divulgação, ou popularização, do exercício criador, como uma região em que a liberdade de sonhos, de transfigurar, de gritar e de documentar – de dizer enfim – deve permanecer intacta, a salvo de qualquer ameaça ou pressão. Tarefas difíceis, sem dúvida – mas indescartáveis, tarefas de guerreiro.
A filosofia oriental – em particular a chinesa, cujos fundamentos estão formulados com rigor no I Ching – procura compreender as leis profundas que manipulam o real através da natureza do mundo. Esta é eternamente incompleta e, portanto, puro movimento e transformação.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na