Elementos da formação cultural são resgatados
O livro de poemas Sangue Português, de Raquel Naveira, nos
traz a época das grandes navegações e descobrimentos, consequência da política
de expansão comercial dos povos europeus. Em alguns poemas fica a sensação do
espírito de aventura dos portugueses e europeus que aportavam no Brasil em fins
do século XV, em busca de enriquecimento rápido e fácil – conseguindo graças ao
trabalho escravo, como mostra na releitura de Navio Negreiro, de Castro Alves: “Pela proa,/ Pela popa,/ Correm as sentinelas da Coroa,/ É preciso
guardar o ouro,/ O marfim,/ Os escravos;/ A cobiça é um abutre/ Que devora os
fígados/ E atordoa as almas. Página 75.”
Ao deparar com os nomes que povoam
o universo da obra, a exemplo de Bocage,
Florbela Espanca, Confissão de Mariana (À Sóror Mariana Alcoforado) Lord Byron
em Sintra, D. Pedro em Queluz, Dona Maria, a Louca, Camões em Macau, Moçambique (a Mia Couto) e outros, o(a)
leitor(a) empreenderá uma viagem de turismo literário e resgate, como azulejos
assentados no painel particular de Naveira, na qual encontrará as raízes
nacionais influenciadas pela cultura, educação até a inclusão do vocabulário e,
consequentemente, a transformação e a adaptação no modo de vida dos brasileiros.
Igualmente, a poeta pretende – através de alguns quadros essenciais da vida
portuguesa e familiar: o território, o povo, os costumes, as terras – situar o (a)
leitor(a) no tecido vivo da língua e no âmago da vida corrente, ideias e hábitos.
Assim, num espírito de fidelidade
à cultura portuguesa, a autora pretende fornecer, ao mesmo tempo, boa poesia
nos compartimentos costumeiros em que a literatura se divide para classificação
(poesia, prosa poética, etc.). São poemas que passeiam pelas reminiscências familiares
de Raquel Naveira (Figueira da Foz, Só se
Vestia de Preto, que deseja catalogar
uma terra (vegetação, fauna, clima) pela memória física de lugares, sua arquitetura
clássica e própria (“Cacos e faianças/
Seguiram para Olinda,/ Paraty,/ Porto Seguro,/ Ornaram pias,/ Mosteiros,/
Altares,/ Pois há horror ao vazio/ nessa estética de exuberância./ Vejo
Portugal/ Em cobalto azul/ E lacrimejo.” Azulejo, página 71) e um povo (da
constituição física, das vestimentas e seus costumes), sem deixar de lado o sentido
profundo na simbologia dos arquétipos da mitologia grega (“...Netuno está quieto/ Sob as águas tranquilas,/ Ninfas passeiam/ Com
asas de libélulas/ Enquanto as Parcas/ Tecem os fios de nossas vidas;/ Logo será noite,/ Após o
ouro de Apolo/ Segue-se a prata de Diana/ E a chama estremece.” Ricardo Reis no Rio de Janeiro, dedicado
a Fernando Pessoa, página 49).
A poesia de Naveira caracteriza-se
pela capacidade de recriar, poeticamente, a realidade a partir de figuras e
pontos que passou como turista, que transpõe nos painéis em forma de azulejos,
que montou. É a capacidade de ver nas cidades, pessoas, lugares e, no país, não
só as mudanças, as desigualdades sociais, mas também a beleza colorida e
vibrante da tentadora civilização ocidental. Essa beleza não percebida até
então, que atrai e mortifica, porque concilia o bem e o mal.
Em outras palavras, o que
interessa à poeta é o mundo que a rodeia, o homem situado na vida terrena. Esse
ser palpável vivendo num espaço social, aprendido pela razão, mas, basicamente,
pelos sentidos. São comuns em seu livro versos que descrevem sensações visuais
e com enquadramentos de cinema. O mundo de seus poemas é o português,
ocidental.
Naveira foge da tradição acadêmica
por não tratar o homem português como o sempre intrépido e heróico navegante,
desbravador de terras e mares. Por fugir da face épica, em sua versão oficial,
cada estrofe, cada verso da poeta estão imbuídos da história de Portugal, vista
sob a ótica dos que sempre foram mantidos fora da cena principal: artistas das
ruas, carroceiros, miseráveis, párias, entre outras figuras à deriva do rio da
existência. Enfim, de todos os que suportaram anonimamente as glórias do
passado heroico e que passam, em sua obra, há personagens principais: outras que
sofrem a cruel e fascinante transformação da sociedade e cultura portuguesa,
que se urbaniza, se industrializa, mas sempre sob a égide de padrões ingleses
ou franceses.
A poeta-transeunte das ruas de Lisboa
e do Porto, descreve a aldeia em que viveram seus pais, avós e antepassados,
refaz o caminho ao visitá-la e consegue revelar cada detalhe das cenas
contrastando a beleza, a tragédia com a transformação urbana e humana também
das colônias. Muito semelhante aos Quadros
Parisienses retratados por Charles Baudelaire.
SANGUE PORTUGUÊS
Raízes, Formação,
Lusofonia
Raquel Naveira
Poemas
132 Páginas
Editora Arte & Ciência
São Paulo
2012
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