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O Limite





Antiga Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) nos anos 60














Ouço pais reclamando sobre o comportamento das crianças. Sempre digo sobre a dificuldade em incutir o conceito de limite nas crianças, antes que alcancem a adolescência. Acredito que todo homem reproduz, em algum momento de sua vida, a sensação do primeiro pré-humano que sentiu a sensação única e intraduzível envolvido por fortes emoções, como enfiar o dedo numa fava de mel e, depois, lamber o dedo, e ter o vislumbre das dádivas do mundo – enquanto fugia das abelhas.
Quero deixar bem claro, meus caros leitores, que isto é apenas uma simples reflexão, nem mesmo teoria psicológica. O meu momento foi a primeira vez que vi passar um trem pelos trilhos. A minha geração aprendeu, entre outras coisas, a ter a noção de limite ao do observar a linha do trem com os coleguinhas, a saber esperar, com distância dos trilhos, quando soava o apito do trem. Debruçado na grade, todo dia, a gente esperava religiosamente o trem apitar avisando que ia passar... Com os braços levantados cada um tentando pegar para si. Era uma mistura de euforia, ansiedade e frio na barriga quando a gente via o trem passar pela Rua Mendes de Morais, na Vila Marina. E esperava até a longa fumaça da chaminé sumir no horizonte.
Quando anos mais tarde sincronizei Trenzinho Caipira de Villa Lobos com o ritmo do trem e da vida. Para mim, uma junção perfeita entre a harmonia e as doçuras da vida. De vez em quando você ouvia os vizinhos comentando que alguém foi atropelado ou morreu nos trilhos. Talvez, um bêbado, um morador de rua ou alguém frustrado pelo amor não correspondido. Mas eram outros tempos...
Muitos anos depois tudo se transformou, com o advento da tecnologia, do consumo desenfreado e dos mundos virtuais sem fronteiras oferecidos pelos games e internet. E, por falar em pré-humanos fica uma certeza: “Se Eurico Miranda existe, tudo é permitido.” O empresário como parâmetro de permissividade ou degeneração, só mostra como, com o tempo, até a dissolução moral e limite ficou datada. A escolha de um nome para preencher o espaço de símbolo da nossa degradação é tanta (e sem sair da categoria política e futebol) que o mais certo, mesmo, talvez fosse inverter a frase: “Já que tudo é permitido, existem...” e se seguiria a lista dos que aproveitaram o clima de impunidade, de omissão conveniente, de deixa-pra-laísmo, esta longa história de cumplicidade tácita e cinismo, para prosperarem e prevalecerem.
Todas as sociedades têm seus Euricos Mirandas, grotescos e sem senso de limite, mas é preciso um tipo especial de indulgência a sua volta para eles chegarem aonde chegaram, por aqui. O maior desafio atual dos pais, é conseguir educar seus filhos sobre as noções de limite e proporção, uma tarefa árdua que exige o empenho e, principalmente, soluções práticas para que não fique apenas nos planos da teoria e da filosofia.



(Esta crônica pertence ao livro “Novas de Macho na Cozinha
e Outros Ingredientes”, 242 páginas,
editora Clube de Autores, São Paulo, 2012)






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