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Surto de Livros













A partir da década de 90, houve no Brasil
um surto de títulos, desde poesia,
passando pela crônica até  relatos
históricos e memorialistas.
Resta saber se esse crescimento
implica em qualidade literária.











            Dos diversos enfoques que se pode dar à questão da literatura de Presidente Prudente, um dos mais esclarecedores sobre a representatividade do chamado surto do livro em nossos dias é aquele visto como fenômeno social e manifestação cultural de um povo que, no início do século 20, tinha 80% de analfabetos.
   O significado do espaço teórico recebido nas discussões sobre literatura  há que buscá-lo na perspectiva histórica revelada no lento processo do Brasil e de Presidente Prudente, para evoluir da condição de um atraso cultural acachapante para a formação e conquista gradativa de um público leitor. Uma abordagem do fenômeno, descuidando dessa dimensão cultural, e que desconheça suas peculiaridades enquanto fato num País terceiro-mundista, corre o risco de não lhe desenhar o verdadeiro contorno desprendendo-se do contexto onde ele efetivamente se dá e onde, exclusivamente, ganha sentido.
     Contudo, é inegável a expansão do público leitor, especialmente infanto-juvenil, ocorrido no início da década de 2000. Tal fato pode ser atribuído a dois fatores principais: o aumento do poder aquisitivo da burguesia urbana trazido pela industrialização, os programas sociais e o crescimento da faixa de escolaridade obrigatória que significou maior número de jovens leitores. Como decorrência, aconteceu acentuada demanda no movimento editorial verificado entre 80 e 90, período de surgimento de novos autores de literatura em geral, da publicação bem maior de títulos e da reedição de textos de períodos anteriores. Podemos ilustrar com o kit literário onde os alunos conheceram a prosa única e original das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa, O Ex-Mágico de Murilo Rubião, A Máquina Extraviada de José J. Veiga, Madame Bovary de Gustave Flaubert, a arte poética nas antologias de Vinícius de Moraes, Mário Quintana, Adélia Prado, entre tantos outros nomes ilustres esquecidos do grande público e do meio editorial.
     Além disso, temos que fazer jus à iniciativa dos organizadores do CLIPP (Concurso Literário de Presidente Prudente), na última edição da série, de número VII, ao selecionar escritores do Rio Grande do Sul, Paraná e de Portugal, comprovando a boa aceitação e divulgação, além de aumentar a credibilidade da obra. Faltou apenas uma melhor coordenação editorial, incluindo no índice o título da obra, o nome do autor e a página correspondente do trabalho e, no final da seleta, elaborar, por ordem alfabética, um breve histórico dos escolhidos, no máximo 10 linhas, para que o(a)s leitor(a)s conheçam a trajetória de cada um.
      A leitura tanto dos poemas como dos textos demonstra os valores cristãos, como o amor, a amizade, o respeito, o adultério e a solidariedade, além da tradição e o hábito cultivado pelas avós e mães, derivado da cultura portuguesa. Em algumas prosas temos mais palavras como preconceito, as relações e os desejos homoafetivos, ostentação, orgulho, arrogância,  fornicação, contemplação, adultério e ingratidão. Numa foto no estilo noir, em preto e branco, a realidade nua e crua, “pungente sobre o que estamos acostumados a assistir na relação  capital versus ser humano, trabalho versus gente, em que a idade torna-se uma senha para um apartheid funcional e o ser pensante. Crítico e artista não têm lugar num sistema produtivo, em que as tarefas repetitivas e enfadonhas apequenam e insularizam o ser. E é uma óbvia crítica ao mercado, que ávido de competição e produtividade, proscreve os de meia-idade, porque o capital só enxerga agilidade nos mais novos, estes também fáceis de manipulação, porque para mostrar o melhor de um produto, acabam revelando o pior de si. Assim, também, os testas-de-ferro dessas empresas que agem em nome de um patronato insensível e sem rosto. Espelhou-se bem o status quo.” – diz Ronado Cagiano, escritor, poeta e crítico literário, sobre o conto A Entrevista.



Qualidade e Quantidade



     Uma invasão de títulos infanto-juvenis, no mercado de um País que vive a mancha social do analfabetismo funcional e um constrangedor déficit educacional, constitui-se num grande fenômeno de significado cultural. O enfoque desse surto do ponto de vista literário, no entanto, não apresenta igual ressonância.
           Há uma definição muito simpática à literatura infantil conceituada como sendo a literatura que a criança também pode ler. Esse enfoque retira do gênero o caráter restritivo, expandindo-se em sua possibilidade de recepção. A realidade, porém, é que não surgiu entre nós nenhum Lewis Carroll, não temos nosso Mark Twain nem um Jonathan Swift tupiniquim compondo obras de tal complexidade e suportando tantos níveis de leitura que possam responder tanto ao interesse do jovem leitor quanto ao do adulto exigente.
        Temos alguns bons autores de literatura infanto-juvenil, aqui, na cidade, no gênero romance realista, histórico e poesia moderna. Voltando ao caso dos infanto-juvenis, a maior parte deles, contudo, apresenta uma obra irregular, ou seja, não mantém o mesmo nível de qualidade em todos os títulos, talvez impedidos pelas pressões e pelas oportunidades do mercado. Por outro lado, o investimento das editoras em fórmulas de autoajuda, romances açucarados, onde sustentam a instituição tradicional do casamento, compostos por místicas batalhas dualistas com cenários góticos e fantásticos de mundos paralelos em confronto, direcionado ao sucesso rápido e descartável, se levarmos em conta o que era produzido há 25 anos.
       Para aumentar o faturamento, algumas editoras imprimem pequenas edições de 300 livros, usando papel e impressão de qualidade. Essa abertura mostrou os dois lados da moeda: uma faixa de bons autores originários de cooperativas alternativas, fanzines e blogs, que quebraram o poder centralizado dos editores e, na outra face, o mercado apresenta livros de conteúdo medíocre, com capas bem elaboradas por designers gráficos e títulos ousados e chamativos, apenas com o interesse de comércio, na intenção proposital de banalizar a arte milenar da escrita, como uma mercadoria de consumo que se usa e se joga fora, como um suco de laranja em caixa artificial. Entretanto, se não confundirmos o lúdico com o literário e do divertido com o artístico, somos obrigados a concordar que, no caso, cumpre-se a citação bíblica e poucos serão os escolhidos.
       Na verdade, no enfoque da literatura infanto-juvenil, é preciso distinguir diferentes dimensões. Existe a sociocultural manifestada no crescimento de títulos, exemplares e autores dos mais diversos tipos e qualidades e que ganha, na nossa história, um sentido especial. Há também, a de fenômeno literário produzindo algumas boas obras como, por exemplo, Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles, História Meio ao Contrário, De Olho nas Penas, de Ana Maria Machado, Sozinha no Mundo, de Marcos Rey, Sete Cartas e Dois Sonhos, de Lygia Bojunga Nunes, Cavaleiros das Sete Luas, de Bartolomeu Campos de Queirós, que estes sim, podem ser lidos também por crianças. E, além desses aspectos, há a dimensão de experiência individual de leitura cujo acervo infanto-juvenil propicia, uma vez que a criança e o jovem a ele tenham acesso e o adulto assuma a postura de respeitar o interesse, a necessidade e o gosto infanto-juvenil que farão do contato com a obra um ato de escolha e liberdade.







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