Ronaldo Werneck, Lina Tâmega Peixoto e Francisco Marcelo Cabral.
Livraria da Travessa. Ipanema. Rio, 2011
Escrevemos
porque
sabemos
que vamos morrer.
Escrevemos
porque não
sabemos
por
quê.
“Perdemos
nosso amigo. Cabruxa partiu há meia hora”. Vindo do Rio, o telefonema da última
quarta-feira, 20 de agosto, era da poeta Lina Tâmega Peixoto, e a notícia –
embora esperada, mas não tão cedo – me deixou a nocaute. Cabruxa era como Lina
denominava o seu, o nosso grande amigo, o poeta Francisco Marcelo Cabral, que
eu aprendi desde a juventude a chamar de Chico-Chiquinho Cabral. Eu estivera no
Rio até a véspera, gravando uma entrevista para TV e, naquele momento, já me
encontrava em Cataguases, envolvido com um projeto que precisava enviar para
Belo Horizonte até sexta-feira. Parei tudo. Minha mulher, a Patrícia,
encontrava-se em uma audiência no Fórum. Esperei que ela voltasse, ainda meio
sem saber o que fazer. Já era final de tarde, eu ainda meio a nocaute. Patrícia
sugeriu que seguíssemos logo para o Rio.
Noite alta – e, por ironia, “céu
risonho”–, fomos estrada afora, eu me lembrando de meu amigo maior. E veio o
fragmento de um de seus primeiros poemas: É hora de sol/ lá fora/ e noite, no
coração./ Milhares de estrelas,/ borrões/ que as nuvens carregarão. E outro, de
seu mais que admirável livro “Inexílio”: Amar menos/ é morrer/ como o rio sendo
freado pela areia/ como tirar os óculos, desligar o telefone,/ guardar a
máquina de escrever e sair de casa/ para nada. E logo outro, vindo lá de 1949,
de seu primeiro livro, O Centauro, editado em Cataguases: Me matei de sombra/
Me pintei de roxo/ Fiz um metro, um canto// Para o meu amor./ Que lucrei?/ Um verso./ Que fazer? cantar./
Mas se há dor? que importa!/ A dor é só instrumento.
Cidade Interior
O carro corria na noite e me lembrei
de um bilhete que mandei pro Chiquinho, quando ele lançou Cidade Interior (Rio,
2007): “O seu despojamento, essa sua dicção absolutamente particular – que não
consigo identificar em nenhum dos poetas que conheço – esses seus “poemeus” de
antitergi/versar que me comovem, que me locomovem a cada vez que os releio, meu
caro Chico Marcelo, e que pro seu universo (re)torno – mesmo “que” com todos
esses “quês” –, para essa sua Cidade Interior. E confesso ser cada vez mais
tomado pela alta tensão de sua “escritura” (merci bien et voilà, M´sieu
Derrida), esses poemas que tanto me tocavam a cada releitura, e que hoje guardo
e guardarei sempre: é onde às noites os medos / .../ cortam as luzes das ruas /
.../ as pisadas no tambor dos pesadelos / .../ (e onde os mortos rumorejam
pelas grotas) / .../ uma cidade para sempre estacionada/ no poema/ – falsa e
inesquecivel”.
Esses
poemas – escrevia eu naquela ocasião – sobre os quais não sei ainda o que dizer
agora, numa primeira e rápida e mais que prazerosa leitura. A não ser o óbvio,
aquilo que sempre digo: além de tudo, do grande poeta, você é também "il
miglior fabbro da Dr. Sobral" (a rua de Cataguases onde nascemos). E
aquele poema então, aquele insight, coisa de poeta maior:
Todo
poema é celebração
mesmo
não lido.
Todo
poema é de amor
mesmo
perdido.
Todo
poema fica por aí
mesmo
esquecido.
Não, não
ficam. Não os desta Cidade Interior, não se poemas como aqui, nesta em si
clari/cidade: antes que o sol mergulhe e se apague no mar”. Daqui, poema
nenhum, nenhum sol será apagado.
Campo Marcado
Em abril de 2008, abri a
apresentação que escrevi para seu livro Campo Marcado (Rio, 2010) com um
pequeno poema que Manuel Bandeira lhe dedicou.
Ao
poeta de Cataguases,
Autor
do belo Centauro,
O
Poeta Manuel Bandeira
Envia
um ramo de lauro,
Saudando-o
desta maneira
Ás
futuro entre outros ases!
“O poemeto
de Bandeira é de 1949, ano da publicação de O Centauro, o livro de estreia do
jovem poeta Francisco Marcelo Cabral, então com 19 anos. São na verdade
“antenados” os poetas, mesmo aqueles que se dizem “menores”, enquanto grafam na
maior, e com maiúscula, o seu epíteto.
Ás
futuro entre outros ases! – saúda um muito do exclamante Bandeira, antecipando
a rica trajetória de FMC nas próximas seis décadas. Poucos livros publicou o poeta desde então,
mas todos definitivos. E eles o colocaram ombro a ombro com os melhores poetas
desta e de outras praças e, claro, no pódio dos ases de Cataguases, aqueles
rapazes que fizeram a Revista Verde e marcaram a história da cidade.
O “ramo de lauro” de Bandeira foi
devidamente assentado na cabeça de Francisco Marcelo Cabral, que o ostenta com
toda a dignidade do poeta singular, poeta maior que é. Poucas vezes – nenhuma! – vi gente tão culta,
de tão grande sensibilidade e inteligência como Francisco Marcelo Cabral.
Brinco de chamar o poeta de brilhante, mas brilhante é pouco quando se trata
dele.
Brinco também chamá-lo de “meu guru”
(e não é?) desde que – lá se vão quantos anos? – ele me levou, no Rio, à casa
de Alexandre Eulálio, então leitor oficial da Biblioteca de Veneza, para que eu
conhecesse “uma das pessoas mais cultas do Brasil”. Pois é, Alexandre e eu
ficamos arrebatados por aquela noite inteira a ouvir o poeta que sabia de tudo
um muito mais que tudo.
Francisco Marcelo Cabral é um
poeta-perguntador e por isso mesmo capaz de articular respostas essenciais, de
nos propor descobertas: as palavras são portas de saída mas não de entrada. A emoção ou conceito,
presentes num texto, são de quem o lê e não mais apenas de quem o escreveu.
Que o diga agora este Campo Marcado.
Melhor, que nele possamos (re)ler e (re)assumir a emoção que ressurge a cada
poema:
A
luz e o silêncio em mim sabem a vida
e
quando respiro
tudo
o que não entendo faz sentido.
Com seus
metapoemas mais que luminosos, com sua grande intensidade, Chico Cabral faz de
Campo Marcado pedra de grande quilate, que há de rolar sempre entre seus
(muitos) fiéis leitores. Escrevo a língua do meu avô/ sem permissão. Ora, por
quem sois, meu poeta! Vosmicê tem mais que toda permissão!”.
No Rio de meados da década de 1960,
Chiquinho Cabral e eu éramos redatores de um escritório de planejamento
econômico, Leone e Associados (um dos associados era o próprio poeta, sem
controvérsias o “cérebro” do escritório). Um dia, chegou um projeto de
cemitério vertical e ele, como numa premonição, foi seu maior defensor. No Rio,
na manhã da última quarta-feira, o corpo do poeta foi colocado – ao lado de
seus irmãos, Edvar e Pedrinho – numa das gavetas do Memorial do Carmo, aquele
mesmo cemitério cuja verticalidade tanto defendia o redator Francisco Marcelo
Cabral. Estava lá Chiquinho Cabral, com a fisionomia tranquila, como se voasse
após meses de sofrimento.
Alguém leu
um poema de seu Livro dos Poemas (Rio, 2003), um de seu cantos para o Maharaji:
Meu mestre dança como os pássaros./ E canta com os claros tímpanos da aurora./
Ele caminha como a brisa sobre as rosas./ E eu sou a almofada sob seus pés
quando repousa. A seguir, o ritual fúnebre, mesmo não sendo católico o poeta.
Foi quando mais uma vez, como em todos os muitos velórios a que já fui, voltei
a assustar-me – talvez por “ler” errado – com aquele trecho da Ave Maria: “E
agora e na hora de nossa morte, amém”. A poesia vem do susto, do espanto:
O
leitor se assenta.
O
poeta puxa a cadeira
a
poesia é o tombo.
O
leitor se enleva
o
poeta o empurra no abismo
a
poesia é o voo.
Voando, me vou
Logo
depois da cerimônia, eu e Patrícia voltamos para Cataguases. Um dia belíssimo,
de sol e céu azul, que me fez lembrar um mês de maio de não sei quando em que
eu e Chiquinho Cabral viajávamos por essa mesma estrada. Estava contente e
alegre como sempre o meu poeta, que dizia preferir, entre todas, as manhãs de
maio e céu azul. Tinha razão: mesmo de sol e céu azul, costumam ser traiçoeiras
as manhãs de agosto.
Quando
essa respiração vem
com
renovada força de vida
não
perguntes nada
simplesmente
a recebe e aceita
e
gratidão seja a música de tua alegria.
Já em
Cataguases, debrucei-me sobre o famigerado projeto, que consegui enviar a tempo
para Belo Horizonte. Mas por todo o tempo em que escrevia, a presença de
Chiquinho Cabral permanecia em mim – e os poemas de Francisco Marcelo Cabral
assomavam, saltavam de meu ser, como se voassem:
Temo
jamais ter merecido
as
asas dos meus versos.
Às
vezes eu as desprendo – é noite, é Minas –
E
como quem espreguiça
num
largo espasmo
alço-as
e me vou, ou sou levado
voando,
me vou.
Ronaldo
Werneck
domingo, 24 de agosto
de 2014
*O autor
é poeta, cronista, editor, assessor de comunicação e produtor cultural
Crônica publicada no Blog Há
Controvérsias de Ronaldo Werneck em 25 de agosto de 2014.
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Tive o imenso PRAZER, de ter Marcelo como amigo pessoal, com certeza parte de mim morre com ele, estive com ele algumas vezes no hospital tentando trazer um pouco de alegria e conforto fraterno.
ResponderExcluirUma perda irreparável, sou seu leitor, admirador, apaixonado por este ser ímpar.
Realmente meu coração está em pedaços palavras aqui não conseguiriam descrever o que sinto neste pesado momento de minha vida.
o que posso dizer é que o sorriso de Marcelo nunca mais sairá de meus melhores sonhos e momentos que pude compartilhar com ele.
aprendi muito com ele, foi um mestre para mim.
Deixo aqui nestas letras sem vida que tento digitar, um pouco, do meu sentimento por ele que mesmo pós morte, não deixarei de ter.
Com o coração despedaçado me despeço desse Amigo, irmão, companheiro que foi Meu Marcelo.
Marcelo deixo aqui um beijo carinhoso de seu eterno e para sempre amigo, como você me chamava carinhosamente bobão......você sabe!
te amo Amigo.
OBS: tive a honra de ter o poema A CARNE DA PALAVRA, dedicado a mim, foi um presente que nunca mais esquecerei.
Até logo meu Marcelo, espero rencontrar você em breve em um outro plano. beijos .