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Caio Pego II











À beira do precipício ficou parado de cabeça baixa,
desenhando figuras nas pedras com os olhos.
Ali ficou em pé durante um momento
o rosto voltado para a distância.
Separado da terra firme por larga faixa dos companheiros,
da família, dos colegas de trabalho, do ar, da água,
entre outros elementos químicos
por um capricho orgulhoso,
que vagueava, uma imagem altamente distante
e desligada, com o cabelo esvoaçando, lá fora do mar,
no vento, de frente ao nebuloso ilimitado











            De tanto emergir evaporei-me. Como mergulhador, sondei-me e deixei-me submergir e vivo pensando se sou profundo ou raso. Um sopro de vida no olhar mostra o claro enigma da pegomancia no abismo refletido no espelho d´água a minha face contempla o calabouço. Nunca me realizei como Caio Pego fitando o Céu.
            Não trabalhava como alguém que trabalha para viver, trabalhava como alguém que nada mais quer se não trabalhar, porque como ser vivente não se dava nenhum valor, só desejando ser considerado como criador, vagueando, de resto, em cinza e sem ser notado, como um ator sem sua maquilagem, que nada é enquanto não tem o que representar. Trabalhava silenciosamente, recolhido, invisível e cheio de desprezo pelos pequenos para os quais o trabalho era um enfeite sociável, os quais, fossem pobres ou ricos, se exibiam selvagens e rotos ou luxavam com gravatas pessoais, que em primeira linha intencionavam ser felizes, gentis e levar uma vida artística, desconhecendo que as boas obras só se formam sob a pressão de uma vida dura; que aquele que vive não trabalha e que é preciso ter morrido para ser um completo criador.


            A alma andarilha de Caio Pego olhava e seu peito ficou dilacerado. A atmosfera da cidade, este leve cheiro pútrido de química e lama, do qual se sentira tão impelido a fugir, respirou-o agora em fôlegos profundos, dolorosamente afetuosos. Era possível que não soubesse, não pensasse o quanto seu coração se prendia a tudo isto? O que hoje de noite fora um meio lamento, uma leve dúvida sobre a exatidão de seu ato, transformava-se agora em aflição e dor reais, em um tormento de alma tão amargo que lhe punha os olhos cheios de água; tormento este, dizia a si, que não fora possível prever. O que achava tão difícil de suportar, sentindo mesmo, às vezes, completamente intolerável, era evidentemente o pensamento de que nunca mais veria o mar, de que esta era uma despedida para sempre. Pois como pela segunda vez se revelara que a cidade o punha doente, como, pela segunda vez, tinha de abandoná-la às pressas, tinha de encará-la, de agora em diante, como um lugar impossível e proibido para ele, não estava à sua altura, e procurá-la de novo teria sido irrisório. Sentiu mesmo que, embarcando agora, seria impedido pela vergonha e teimosia de algum dia rever a cidade.


            Caio Pego cobriu a testa com sua mão e fechou os olhos que ardiam porque dormira pouco. Pareceu-lhe que nem tudo era como de costume que começava a alastrar-se uma estranheza sonhadora, uma desfiguração do mundo para o esquisito que talvez ainda pudesse ser detida se escurecesse seu rosto e tornasse a olhar. Neste momento, porém, teve a impressão de movimento e, abrindo os olhos com susto insensato, notou que o pesado e escuro corpo do navio do destino se afastava vagarosamente do cais. Por polegadas...
            Despiu-se de alma e espírito, deitou-se e apagou a luz. Murmurou dois nomes dentro do travesseiro, estas poucas, castas, nórdicas sílabas, que designavam sua verdadeira e primordial espécie de amor, sofrimento e felicidade, a vida, o sentimento simples e terno, a pátria. Olhou para trás, para os anos que haviam passado até aquele momento. Pensou nas dissolutas aventuras, sensuais, dos nervos e dos pensamentos que tinha vivido, viu-se corroído pela ironia e pelo espírito, isolado e tolhido pelo reconhecimento, meio destruído por febres e calafrios de criação, indeciso e em luta com a consciência, entre fortes extremos, atirado de um lado para outro, entre a santidade e o ócio, finório, empobrecido, esgotado por frias e artificiais exaltações, perdido, consumido, atormentado, doente... – e soluçou de arrependimento e saudade.
            À beira do precipício ficou parado de cabeça baixa, desenhando figuras nas pedras com os olhos. Ali ficou em pé durante um momento o rosto voltado para a distância. Separado da terra firme por larga faixa dos companheiros, da família, dos colegas de trabalho, do ar, da água, entre outros elementos químicos por um capricho orgulhoso, que vagueava, uma imagem altamente distante e desligada, com o cabelo esvoaçando, lá fora do mar, no vento, de frente ao nebuloso ilimitado. Novamente parou para a espreita. E repentinamente, como sob uma lembrança, sob um impulso observa ali, como em outra oportunidade estivera, quando pela primeira vez, este olhar cinza-alvorada correspondera encontrando o seu. Sua cabeça seguia vagarosamente os movimentos daquele Caio Pego que andava lá fora; agora se ergueu como que de encontro ao olhar, e caiu sobre o peito, de modo que seus olhos viam por baixo, enquanto seu rosto apresenta a indolente afetuosa e meditativa expressão do sono profundo. Mas pareceu-lhe que o pálido e gracioso psicagogo lá fora lhe sorria, lhe acenava, como se flutuando na sua frente para a imensidão auspiciosa. E, como tantas vezes, levantou-se para segui-lo.
            Dias passaram até virem em auxílio do que caíra na cratera. Comunicaram para uma equipe de resgate aéreo.
            Durante vários dias o tempo estivera coberto e chuvoso; agora, o céu estendia-se brilhante sobre o mar, a terra e o penhasco, como feito de uma seda encorpada, azul-pálido, atravessado e rodeado por nuvens translúcidas de vermelho e ouro; o disco solar levantava-se solene sobre o mar cintilante e crespo, que parecia estremecer e se inflamar embaixo dele.











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