À
beira do precipício ficou parado de cabeça baixa,
desenhando
figuras nas pedras com os olhos.
Ali
ficou em pé durante um momento
o
rosto voltado para a distância.
Separado
da terra firme por larga faixa dos companheiros,
da
família, dos colegas de trabalho, do ar, da água,
entre
outros elementos químicos
por um capricho orgulhoso,
que
vagueava, uma imagem altamente distante
e
desligada, com o cabelo esvoaçando, lá fora do mar,
no
vento, de frente ao nebuloso ilimitado
De tanto emergir evaporei-me. Como
mergulhador, sondei-me e deixei-me submergir e vivo pensando se sou profundo ou
raso. Um sopro de vida no olhar mostra o claro enigma da pegomancia no abismo
refletido no espelho d´água a minha face contempla o calabouço. Nunca me
realizei como Caio Pego fitando o Céu.
Não trabalhava como alguém que
trabalha para viver, trabalhava como alguém que nada mais quer se não
trabalhar, porque como ser vivente não se dava nenhum valor, só desejando ser
considerado como criador, vagueando, de resto, em cinza e sem ser notado, como
um ator sem sua maquilagem, que nada é enquanto não tem o que representar.
Trabalhava silenciosamente, recolhido, invisível e cheio de desprezo pelos
pequenos para os quais o trabalho era um enfeite sociável, os quais, fossem
pobres ou ricos, se exibiam selvagens e rotos ou luxavam com gravatas pessoais,
que em primeira linha intencionavam ser felizes, gentis e levar uma vida
artística, desconhecendo que as boas obras só se formam sob a pressão de uma
vida dura; que aquele que vive não trabalha e que é preciso ter morrido para
ser um completo criador.
A alma andarilha de Caio Pego olhava
e seu peito ficou dilacerado. A atmosfera da cidade, este leve cheiro pútrido
de química e lama, do qual se sentira tão impelido a fugir, respirou-o agora em
fôlegos profundos, dolorosamente afetuosos. Era possível que não soubesse, não
pensasse o quanto seu coração se prendia a tudo isto? O que hoje de noite fora um
meio lamento, uma leve dúvida sobre a exatidão de seu ato, transformava-se
agora em aflição e dor reais, em um tormento de alma tão amargo que lhe punha
os olhos cheios de água; tormento este, dizia a si, que não fora possível
prever. O que achava tão difícil de suportar, sentindo mesmo, às vezes,
completamente intolerável, era evidentemente o pensamento de que nunca mais
veria o mar, de que esta era uma despedida para sempre. Pois como pela segunda
vez se revelara que a cidade o punha doente, como, pela segunda vez, tinha de
abandoná-la às pressas, tinha de encará-la, de agora em diante, como um lugar
impossível e proibido para ele, não estava à sua altura, e procurá-la de novo
teria sido irrisório. Sentiu mesmo que, embarcando agora, seria impedido pela vergonha
e teimosia de algum dia rever a cidade.
Caio Pego cobriu a testa com sua mão
e fechou os olhos que ardiam porque dormira pouco. Pareceu-lhe que nem tudo era
como de costume que começava a alastrar-se uma estranheza sonhadora, uma
desfiguração do mundo para o esquisito que talvez ainda pudesse ser detida se
escurecesse seu rosto e tornasse a olhar. Neste momento, porém, teve a
impressão de movimento e, abrindo os olhos com susto insensato, notou que o
pesado e escuro corpo do navio do destino se afastava vagarosamente do cais.
Por polegadas...
Despiu-se de alma e espírito,
deitou-se e apagou a luz. Murmurou dois nomes dentro do travesseiro, estas
poucas, castas, nórdicas sílabas, que designavam sua verdadeira e primordial
espécie de amor, sofrimento e felicidade, a vida, o sentimento simples e terno,
a pátria. Olhou para trás, para os anos que haviam passado até aquele momento.
Pensou nas dissolutas aventuras, sensuais, dos nervos e dos pensamentos que
tinha vivido, viu-se corroído pela ironia e pelo espírito, isolado e tolhido
pelo reconhecimento, meio destruído por febres e calafrios de criação, indeciso
e em luta com a consciência, entre fortes extremos, atirado de um lado para
outro, entre a santidade e o ócio, finório, empobrecido, esgotado por frias e
artificiais exaltações, perdido, consumido, atormentado, doente... – e soluçou
de arrependimento e saudade.
À beira do precipício ficou parado
de cabeça baixa, desenhando figuras nas pedras com os olhos. Ali ficou em pé
durante um momento o rosto voltado para a distância. Separado da terra firme
por larga faixa dos companheiros, da família, dos colegas de trabalho, do ar,
da água, entre outros elementos químicos por um capricho orgulhoso, que
vagueava, uma imagem altamente distante e desligada, com o cabelo esvoaçando,
lá fora do mar, no vento, de frente ao nebuloso ilimitado. Novamente parou para
a espreita. E repentinamente, como sob uma lembrança, sob um impulso observa
ali, como em outra oportunidade estivera, quando pela primeira vez, este olhar
cinza-alvorada correspondera encontrando o seu. Sua cabeça seguia vagarosamente
os movimentos daquele Caio Pego que andava lá fora; agora se ergueu como que de
encontro ao olhar, e caiu sobre o peito, de modo que seus olhos viam por baixo,
enquanto seu rosto apresenta a indolente afetuosa e meditativa expressão do
sono profundo. Mas pareceu-lhe que o pálido e gracioso psicagogo lá fora lhe
sorria, lhe acenava, como se flutuando na sua frente para a imensidão
auspiciosa. E, como tantas vezes, levantou-se para segui-lo.
Dias passaram até virem em auxílio
do que caíra na cratera. Comunicaram para uma equipe de resgate aéreo.
Durante vários dias o tempo estivera
coberto e chuvoso; agora, o céu estendia-se brilhante sobre o mar, a terra e o
penhasco, como feito de uma seda encorpada, azul-pálido, atravessado e rodeado
por nuvens translúcidas de vermelho e ouro; o disco solar levantava-se solene
sobre o mar cintilante e crespo, que parecia estremecer e se inflamar embaixo
dele.
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