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Caio Pego









Como se estivesse com a cabeça inteira dentro do poço
e alguém começasse a tocar acordeão na beira do rio. Pequenas bolhas de som explodiam
sem choque contra seus ouvidos, nota após nota,
até formar-se também por dentro aquela melodia
tão remota e lenta que parecia vir mais
da margem, mas do fundo. 










            De estatura mediana, moreno claro, com buço. Sua cabeça parecia um pouco grande demais em relação ao corpo quase flácido. Seu cabelo penteado para trás, na risca e nas fontes bem ralo e fortemente encanecido, emoldurava uma testa normal, alcantilada e cheia de cicatrizes, que eram o registro da ansiedade das unhas pressionando. A asa dos óculos de cor prata, com lentes sem aro, cortava a raiz do curto e nobremente arredondado nariz. A boca era grande, muitas vezes frouxa e, repentinamente, estreita e esticada; a parte das faces, magra e sulcada pela falta de dois dentes, o queixo bem formado, delicadamente partido. Consideráveis destinos pareciam ter passado por esta cabeça, geralmente sofredora, ligeiramente inclinada para frente; no entanto, tinha sido a arte que assumira aqui aquela formação fisionômica que, em outros, é obra de uma vida pesada e movimentada. Atrás desta testa nasceram as relampejantes réplicas da palestra sobre a vida na esteira de produção no Japão, as guerras de produção e sobrevivência, a desunião dos colegas brasileiros; estes olhos que coçam como cheios de areia, cansados e olhando profundamente através dos óculos, tinha visão o inferno sujo de carvão quando abastecia um forno de mais de 500 graus centígrados. Também do lado pessoal a arte afinal é uma vida elevada. Ela torna mais profundamente feliz, ela consome mais rapidamente. Ela sulca no rosto de seu criado os rastos de aventuras imaginárias e espirituais e ela produz, com o decorrer do tempo, mesmo em monástico silêncio de existência exterior, um ânimo, uma supersensibilidade, um cansaço e uma curiosidade dos nervos que uma vida cheia de dissolutas paixões e prazeres quase não consegue produzir.
            - Às vezes, tenho a impressão de que trago um abismo profundo dentro de mim – disse Caio, em mergulho reflexivo.
            - A parte mais profunda do rio não resiste como durante o dia, mas o envolve amoroso e ele sente nos lábios (...) Este era o mistério que Caio Pego procurava possuir como a uma mulher.
            - Como pensar em outra coisa, se o oceano em alguns pontos do globo, chegava a atingir mais de 10.000 metros de profundidade?
            Se não consigo medir a profundidade do oceano dentro de mim?
            - Será que alcança 10.000 metros de profundidade?
            Quanto mais procuro encontrar-me, mais me perco!
            Aconteceu naquele dia, naquele horário, um dia ao menor movimento, milhares de demônios se libertariam. Era preciso tomar cuidado, procurar distrair-se, como aconselhava a mulher.
            Como se estivesse com a cabeça inteira dentro do poço e alguém começasse a tocar acordeão na beira do rio.  Pequenas bolhas de som explodiam sem choque contra seus ouvidos, nota após nota, até formar-se também por dentro aquela melodia tão remota e lenta que parecia vir mais da margem, mas do fundo. Onde haveria quem sabe pedras verdes de limo, peixes coloridos, conchas, estranhos vegetais entrelaçados. Movimentando cada membro ao som de cada nota, ele tentou mergulhar em direção à areia clara do fundo. Sabia a origem de cada gesto a brotar de um centro como que desperto pela nota musical e assim, musicado, o movimento irradiava-se através dos músculos, espalhando-se sem pressa na superfície da pele até atingir as pontas dos dedos que agora movia, abrindo e afastando leve a água para mergulhar. Mas ao invés de afundar, peixe, de repente foi içado para cima, para fora, para uma penumbra cheia de contornos onde divisava vagamente qualquer coisa como as costas de um homem grande sentado.
            As ondas rebentavam ao meu redor. O que me aconteceria se estivesse justamente sob o ponto de ruptura de uma massa líquida? Impotente, mas confiante na flexibilidade e desenvoltura dos braços e pernas, adormeci desejando uma noite sem sonhos. Foi uma noite de pesadelos. Tinha a impressão de que a água subia ao meu redor, de que invadia tudo. Comecei a me debater. Nem havia sequer um barco sobre mim! Começo a nadar. Nado com mais força morto de angústia, acordo, o apartamento está totalmente submerso. Eu percebo que uma onda acaba de rebentar exatamente sobre mim. É preciso tirar a água a qualquer preço. Apenas os poderosos flutuadores de borracha continuam a flutuar e, por todo lado só se vê o mar; o navio do destino continua imperturbavelmente sua rota, como um destroço. Mas eu não tenho o direito, não tenho tempo de deixar desencorajar. Quase instintivamente começo a tirar a água primeiro com as duas mãos, depois com o meu chapéu: instrumento absurdo para esse trabalho impossível. Seria preciso tirar a água bem depressa entre as ondas maiores, para que o navio do destino alijado, emergisse suficientemente. Mesmo munido de um verdadeiro vertedouro, ainda seria necessário manter uma cadência em si mesma extenuante: Cada onda importante que nos atingisse provocaria um grande choque sobre a parte traseira e, imediatamente, o oceano rebentaria novamente tornando inútil, irrisório, desesperador, o trabalho dos dez ou quinze minutos precedentes. Eu próprio tive muito trabalho para compreender como, o náufrago sempre será mais teimoso do que o mar.

            Ficou imóvel e depois, em desafio, moveu duas vezes a caída e se aprofundou verticalmente no seu mundo espesso e sinistro. Exultante e já sem fôlego, o mergulhador encolheu-se, atira as pernas para cima e foi atrás.
            Estava parado, imóvel, parecia dormir. Apenas a boca escancarada se abria e fechava, como se murmurasse. Raios de luz se cruzavam frouxos ao seu redor. Deslizavam macios e nervosos como uma língua no muco do mar. Descia direto para o fundo, movendo os braços e os pés com o vigor cadenciado de quem sabe que há de chegar. Seus cabelos se abriam como nenúfares e os olhos por detrás do vidro tinham a limpidez das águas-vivas. Que veriam, esses olhos, quando o corpo chegasse ao seu destino? Que descobririam eles na tinta negra do fundo quando as mãos se enterrassem na argila e os ombros se esfolassem na aspereza da pedra? Que momentos de evasão e grandeza viveria o mergulhador, antes que seu peito se oprimisse e estalasse ao peso da água, e o vermelho do sangue a ela se misturasse? Seria um breve instante, o seu tempo de reserva para o regresso, e que ele perderia, fascinado, agarrando-se ao limo das pedras entre caranguejos milenares. Mas seria o bastante para encontrar no fundo do oceano e de si mesmo os primeiros sinais da eternidade.




            Quantos metros teria descido? Lá embaixo via a massa escura das algas e das pedras a acenar para ele. A profundeza jamais atingida de seu mistério. Parecia haver uma caverna onde pontos luminosos se acendiam na escuridão como se do interior das pedras outro sol, sol de cristal ou diamante, fosse nascer para o mundo submarino. A pressão nos ouvidos era já insuportável e não se aguentaria sem respirar senão o tempo necessário para subir. Seu peito se encolhia, agrilhoado pela ânsia de ar que o percorria num espasmo e pensou ainda que a um homem, ou melhor, a um mergulhador, a um verdadeiro mergulhador, aquele momento era o mais importante da vida e um segundo bastava para decifrá-lo. Depois, voltou-se como um peixe e em movimentos rápidos, a agitar os braços e as pernas com terror, ganhou vertiginosamente a superfície. O outro o viu saltar à flor d´água como um delfim, a ponta do arpão agitando-se no ar, enquanto ele respirava, ressuscitado.
            Essa revelação seria a verdade ou uma reflexão: Estava falando apenas como mergulhador.
           
            Estou entre dois mundos; não me sinto à vontade em nenhum dos dois e por isso tenho um pouco de dificuldade. Vocês, adoradores da estética e da beleza, porém, que me dizem ser eu fleumático e sem saudades, deviam imaginar um dom artístico tão profundo e tão do princípio e do destino, que nenhuma saudade lhe pareça ser mais doce e digna de ser sentida do que aquela pelas delícias da trivialidade.
            Enquanto reflito, o mar murmura até aqui e eu fecho os olhos. Olho para um mundo inato, quimérico, mitológico e consumista, que quer ser ordenado e fútil; olho para um formigar de sombras com aspecto humano que acenam para mim, a fim de que as esconjure e liberte: sombras trágicas e cômicas e as duas coisas ao mesmo tempo – e a estas sou muito dedicado.



(Primeira Parte)







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