Imagem de Gilda de Melo Rocha
( 1893 - 1945 )
1.
De
uma cantante alegria onde riem-se as alvas uiaras
Te
olho como se deve olhar, contemplação,
E
a lâmina que a luz tauxia de indolências
É
toda um esplendor de ti, riso escolhido no céu.
Assim.
Que jamais um pudor te humanize. É feliz
Deixar
que o meu olhar te conceda o que é teu,
Carne
que é flor de girassol! sombra de anil!
Eu
encontro em mim mesmo uma espécie de abril
Em
que se espalha o teu sinal, suave, perpetuamente.
2.
Diga
aos menos que nem você quer mais desses gestos traiçoeiros/
Em
que o amor se compõe feito uma luta;
Isso
trará mais paz, por quanto o caminho foi longo,
Abrindo
o nosso passo através dos espelhos maduros.
Você
não diz porém o vosso corpo está delindo no ar,
Você
apenas esconde os olhos no meu braço e encontra a paz na escuridão./
A
noite se esvai lá fora serena sobre os telhados,
Enquanto
o nosso par aguarda, soleníssimo,
Radiando
luz, nesse esplendor dos que não sabem mais pra onde ir./
3.
Si
o teu perfil é purríssimo, si os teus lábios
São
crianças que se esvaecem no leite,
Si
é pueril o teu olhar que não reflete por detrás,
Si
te inclinas e a sombra caminha na direção do futuro:
Eu
sei que tu sabes o que eu nem sei si tu sabes,
Em
ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos,
És
grande por demais para que sejas só felicidade!
És
tudo o que eu aceito que me sejas
Só
pra que o sono passe, e me acordares
Com
a aurora incalculavelmente mansa do sorriso.
4.
Não
abandonarei jamais de-noite as tuas carícias,
De-dia
não seremos nada e a ambições convulsivas
Nos
turbilhonarão com as malícias da poeira
Em
que o sol chapeará torvelins uniformes.
E
voltarei sempre de-noite às tuas carícias,
E
serão búzios e bumbas e tripúdios invisíveis
Porque
a Divinidade muito naturalmente virá.
Agressiva
Ela virá sentar em nosso teto,
E
seus monstruosos pés pesarão sobre nossas cabeças,
De-noite,
sobre nossas cabeças inutilizadas pelo amor.
5.
Teu
dedo curioso me segue lento no rosto
Os
sulcos, as sombras machucadas por onde a vida passou./
Que
silêncio, prenda minha... Que desvio triunfal da verdade,/
Que
círculos vagarosos na lagoa em que uma asa gratuita roçou.../
Tive
quatro amores eternos...
O
primeiro era uma donzela,
O
segundo... eclipse, boi que fala, cataclisma,
O
terceiro era a rica senhora,
O
quarto és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados./
6.
Os
trens-de-ferro estão longe, as florestas e as bonitas cidades,/
Não
há senão Narciso entre nós dois, lagoa
Já
se perdeu saciado o desperdício das uiaras,
Há
só meu êxtase pousando devagar sobre você.
Oh
que pureza sem impaciência nos calma
Numa
fragrância imaterial, enquanto os dois corpos se agradam,/
Impossíveis
que nem a morte e os bons princípios.
Que
silêncio caiu sobre a vossa paisagem de excesso dourado!/
Nem
beijo, nem brisa... Só, no antro da noite, a insônia apaixonada/
Em
que a paz interior brinca de ser tristeza.
7.
A
noite se esvai lá fora serena sobre os telhados
Num
vago rumor confuso de mar e asas espalmadas,
Eu,
debruçado sobre vossa perfeição, num cessar ardentíssimo,/
Agora
pouso, agora vou beber vosso olhar estagnado, oh minha lagoa!/
Eis
que ciumenta noção de tempo, tropeçando em maracás,
Assusta
guarás, colhereiras e briga com os arlequins,
Vem
chegando a manhã. Porém, mais compacta que a morte,/
Para
nós é a sonolenta noite que nasce detrás das carícias esparsas./
Flor!
Flor!...
Graça
dourada!...
Flor...
Mário
de Andrade
POESIAS
COMPLETAS
Mário
de Andrade
Poesia Brasileira - Modernismo
Idioma: Português
640 páginas
Encadernação: Brochura
Formato: 14x21cm
Editora Nova Fronteira
1ª Edição
2013
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