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O Rio Seco e a Ponte





Imagem: Globo.com





  
Este vale de imóveis criaturas
como caída ossada havida e fria, a ponte
e essa mancha de símbolos sombrios
quase como um desmaio ou resquício de sangue.
E os cílios baixos gotejando chuvas
sobre o vidro de areia das horas
enterradas, com os momentos de descaso e crimes.
Foi varrido pelo vento com seu
torvo manto gemendo
rogando um maná que corre com esse choro,
tão ligeiro pela escarpadura
que os olhos de quem vê nunca veem
além do nada agudo do sovado dos pés
que vão de um lado ao outro.


Eriçado, o seu dorso
e os duros sais das dunas roendo
os teus pés de concreto e ferro,
as máquinas do mundo vil metal
que estão subentendidas nos ossos,
as traves de ferro,
de sua contextura soturna.
Abruma também é o rio escasso
que se empluma
carregando um lençol acolchoado
da podridão dos peixes mortos.
Um urubu em patrulha se esvai
por entre o cavernante e atônito estômago seco,
igual ao escoado tempo sob as arquitraves, indo
para qualquer bafiento ar de outra ponte
pois o tempo é matrimonial e é aderido às pontes
por onde a humanidade reincidente passa.


Ouça as silenciosas pontes,
na alta noite, marchando em seus pés de metal e concreto,
carregadas de gente apressada, passando
de um silêncio ao silêncio ulterior da morte.
Ouviremos as inúmeras pontes
galopando na sombra, encolhendo
e estirando o seu dorso corroído em que van vão passageiros.

   
Quando cessa a travessia
surge o rio morto e em estupor fundo,
de bafo quente, ar de tumba, sem luz e oco,
zona obscura como um borrão dúbio
um lençol escuro, insano, incorporado
à medula do rio, sim, morto e pra sempre morto,
cavando o céu de urna e ermo.


Estancado e sem cor, uma unidade
ampla e defunta no horizonte exangue,
igual ao fio de fuligem expelidos pelos escapamentos
dos carros ou o negror dos peixes
agora uns pobres nus sem escamas e sem sangue,
eles não conseguem mais se alongar em cardumes,
esquecem das águas, dos mananciais
e da vida que era o oceano
agora morto, sim, como um ser contemporâneo,
escuro rio dormindo em si,
hediondo e morto como um eflúvio
espontâneo que vai recomeçar um outro mundo
consignado a um cação sem ânus
que emana como um cano essa descarga biológica,
e expressa esse céu consumido em urânio e abismo,
semelhante a esse rio, só a noite, da sonegação da luz,
o suicídio da vida pior que a morte.










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