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As Portas da Percepção: Ruptura de Céu & Inferno










ALÉM DOS LIMITES
Maria Aparecida Pereira de Souza
Poesias
Literatura Brasileira
80 Páginas
Tamanho: 14 x 21
RG Editores
São Paulo - SP
2015








            Há vinte e sete anos Maria Aparecida Pereira de Souza apanha um precioso pássaro vivo, toda canora em verso. O resultado da espera paciente e silenciosa é um livro leve, fluente e, sobretudo, bem lírico, mostrado nas páginas inventadas do pássaro livre de “Além dos Limites”. “Quero como pássaro voar / Buscar a tua presença / E sentir de forma intensa / A vida em meu peito pulsar. / É o amor sem limite / Que nasceu sem razão / Extrapola o infinito / Dos sonhos / Da ilusão.” ( Amor sem Limites, Página 15 ).
            Se, às vezes, os poemas de Souza ascendem a um mundo onírico – com visões fantásticas ou reminiscências infantis -, amiúde descem às preocupações terrenas e utópicas na esperança de um mundo mais justo e igualitário, que sobrepõe à realidade fantasiosa, absurda, violenta, sombria, insegura e, consequentemente, vazia em sua essência. Nesses momentos, a poeta se revela crítica em face do progresso indiscriminado, do egoísmo e da competição negativa, do sistema e das instituições em ruínas, como a família, o Estado, as leis jurídicas, as religiões, a escola, entre outras, que vai esmagando os valores espirituais e, automaticamente, invertendo os valores da sociedade. Essa posição crítica mostra a sua face de defensora da liberdade de criação e da vida.


“Além dos limites / não existem derrotados /
Frustrados ou indiferentes / nem abandonados ou carentes.”

( Além dos Limites, Página 26 )


“Ainda / Há a liberdade cerceada por regras / impostas pela sociedade /
Há liberdade cerceada / Pelos nossos próprios limites /
Enfim.../  Existe liberdade / Para se ter liberdade?

( A Liberdade, Página 70 )


            Maria Aparecida Pereira de Souza é enfim, uma poeta que traçou seu próprio destino, uma artista estável, mas não estática, atenta ao mundo irreal, engessado, limitado, manipulado pelas culturas da culpa, do medo e dialogando com ele por meio de sua reflexão poética. “Os gatos astutos correm / Escondem-se / Nos buracos das vielas / exalando medo / Ocultando segredos / Dos que estão à espreita / resguardados à janela.” ( Silêncio, Página 57 ) Ela leva em seu ideário a importância do exercício e da transcendência poética para a alma humana. É sempre um esforço de autosuperação e, assim, o refinamento do estilo acaba trazendo a melhoria da alma. Souza entende que a poesia é a única novidade possível, pois as informações científicas encontram-se nos buscadores da internet, e nos livros técnicos dirigidos dos acadêmicos. Repetidas estupidamente como robôs, o que lhes foi incutido ou embutido. “O pássaro agoniza / preso na gaiola / Tenta esvoaçar / mas desliza... / Ai do pássaro ferido! Com asas quebradas / Disfarçadas sob as penas / Já não canta. / Ah... que triste pena! / O pássaro falece? / Ou desfalece? / Não sei...” ( Pássaro, Página 13 ) Mas dentro de Maria Aparecida existe a poesia como um vírus que corrói, uma espécie de vício triste, desesperado e solitário. O que caracteriza a estreita afinidade entre o criador e a criação.


“Olhos que não enxergam / Que não conseguem ver / O que está ao lado... / Apenas buscam ver / além do próprio lado.”

( Cegueira da Alma, Página 56 )


            A poesia converte-se no refúgio e no escapulário preferido da autora. Confunde-se com a própria existência, dando sentido a esta. Por sua vez, o exercício criador não é simples. Pode ser secreto e árduo, produto de uma operária triste que trabalha silenciosamente e serena. “O ser que se conhece / Que não se enaltece / Ilumina a escuridão” ( O Iluminado, Página 20 ) Possibilita uma elevação – uma transcendência que a coloca a uma visão de aprendiz em constante transformação, de ubiquidade e não teocêntrica, mas, de divindade cósmica, como afirma Hermann Hesse complementando a reflexão: “O Espírito Universal não nos quer prender e limitar; quer erguer-nos degrau a degrau, quer nos ampliar.”
            “Se pudéssemos limpar as portas da percepção, tudo se revelaria ao homem tal qual é: infinito.” Baseado nesta citação de William Blake no início do livro, o escritor Aldous Huxley assume que o cérebro humano filtra a realidade de modo a não permitir a passagem de todas as impressões e imagens que existem efetivamente. Se isso acontecesse, o processamento de tal quantidade de informação seria simplesmente insuportável. De acordo com esta visão das coisas, o ser humano se apercebe da sua incapacidade para fazer face a tantas impressões. Huxley explica que uma das razões porque as portas da percepção normalmente ficam semicerradas seria para a própria proteção do indivíduo, que de outra forma se distrairia com a enxurrada de estímulos desnecessários para a sobrevivência, promovida pelo marketing da indústria do entretenimento e do consumo.
            Como comprovam as análises de comportamento na história: Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem “paraísos artificiais”, parafraseando Baudelaire. A maioria dos homens e mulheres tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para se superar, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado entre os principais apetites da alma.
            Os poemas de Souza que expõem os bajuladores, na página 65, os tubarões mercenários da sociedade denunciam os aspectos desumanizadores do progresso científico e material, o qual nos faz acreditar em rever os conceitos dos Beatniks, de Ivan Illich, de Mircea Eliade e de Joseph Campbell sobre a resolução dos problemas no mundo estaria na troca da razão individualista ocidental pela sabedoria perene de caráter místico, centrada na ideia de unidade.






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