Gato Azul (1987) de Aldemir Martins
É
o movimento felino de um organismo plenamente
ajustado
às leis físicas, e que não carece de suplemento
de
informação. Livros, escritores e místicos, sim,
beneficiam-se
com a sua presteza austera.
Sempre me pareceu que a palavra
certa era algo assim como um passarinho que voa. E que, para apanhá-lo vivo,
era preciso um meticuloso cuidado que nem todos têm. Fazer um texto não se pega
no dicionário. Nem a laço, nem a grito. Não, o grito mostra a impulsividade, é
o que mais o mata. É preciso esperá-lo com paciência e silenciosamente como um
gato. Mas, o que escrevo hoje não interessa a ninguém, salvo a mim mesmo, ao
papai, à Ellen. Meu caro leitor, deixo à vontade para mudar de coluna, o
assunto é deveras piegas, pois trata-se de um gato. Pela primeira vez que o
tomo para objeto de texto. Princesa estava na graça do crescimento e suas
atitudes faziam-me religar ao encanto imemorial dos gatos. Mas, a Princesa
desapareceu – e sua falta é mais importante para mim, que as cpi´s do mensalão
e da Petrobrás.
Gatos somem de São Paulo e Rio de
Janeiro. Pelo menos há trinta anos, dizia-se que o fenômeno se relacionava com
o trabalho informal do churrasquinho, localizado na periferia e nos morros.
Agora ouço dizer que se relaciona com a vida cara e a escassez de alimentos. Há
indivíduos que se consolam comendo carne de gato pela falta de emprego ou mesmo
para vender “gato por lebre”. O fato sociológico ou econômico me escapa, nem a
sorte das sete vidas dos gatos é que me preocupa. Concentro-me em Princesa e
seu destino não sabido.
Eram 11h45 da manhã, quando a
entregadora veio trazer a refeição, me bate a porta perguntando de seu
paradeiro. Ele me disse que na outra via de uma avenida, havia um gato morto na
ilha. O grande fluxo de carros não dava para identificá-lo. Se não for,
Princesa – pensei o mesmo que papai, e a Ellen – dentro de um ou dois dias
estará de volta. Não voltou.
Ela era o tipo de gata que viveu um
pouco mais nas poltronas, no cimento da garagem ao sol. Vive também para a
almofada do sofá e o salto preciso que dá para atingi-la é mais do que o
selvagem coração da vida. É o movimento felino de um organismo plenamente
ajustado às leis físicas, e que não carece de suplemento de informação.
Livros, escritores e místicos, sim, beneficiam-se com a sua presteza austera.
Certa vez, encontrei numa revista de
curiosidades que os egípcios acreditam que os gatos habitam os dois mundos: o
material e o espiritual. Se a coruja representa a sabedoria para os gregos, o
gato é símbolo da elegância, carrega um ar de mistério, às vezes, um tanto
soturno. Princesa, a gata, funciona na casa, em silêncio, indiferente, egoísta,
mas adesiva. Aproveitável ornamento familiar com os seus olhos de topázio que
longamente me fitavam, aprovando alguma música ou cena na TV, erguendo as patas
ou através do bocejo preguiçoso de sono, que quero antecipar a reação provável
dos leitores. Sei que é próprio dos gatos sair sem pedir licença, voltar sem
dar satisfação, com aquela altivez e serenidade dos gatos, como Princesa.
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