Ilustração de Stephanie Harges
Uma
reflexão lúcida também sobre o poder patriarcal
CARTA AO PAI
(Brief an Den Vater)
Franz Kafka
Tradução
de Modesto Carone
Editora
Brasiliense
88
Páginas
Não existem muitas cartas incluídas
entre as obras literárias com a importância e o interesse dessa carta de Franz
Kafka a seu pai. Incluí-la entre as obras literárias do autor foi uma decisão
de seu amigo Max Brod e me parece que ele acertou. Primeiro, por causa das
qualidades literárias da carta que a excelente tradução de Modesto Carone
consegue resgatar. Segundo, porque, embora endereçada ao pai que nunca chegou a
recebê-la, existe nela um fundo ficcional tanto no modo como o autor fala de si
próprio, do jeito que enxergava o pai, a família e a rede de relações em que
todos eles se inscrevem.
Provavelmente, Kafka tenha falado
mais livremente de si e de seu universo afetivo quando escreveu sua ficção do
que na carta em que se propõe objetivamente a fazê-lo (“Meus escritos tratavam
de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito.” Pág.
50). Talvez ele percebesse que a carta era menos e ao mesmo tempo mais que ela
própria. Caso contrário, para que conservá-la, mencioná-la a outras pessoas (à
Milena, por exemplo) se ela não chegara nem chegaria às mãos de seu
destinatário?
O certo é que na carta Kafka faz uma
avaliação de sua vida inteira marcada, segundo ele, pelo jugo tirânico da
figura paterna. Hermann Kafka, comerciante judeu, com seu egoísmo bruto, sua
mentalidade arrivista e sua negligente vulgaridade teve uma ampla – ainda que
involuntária – parcela de responsabilidade na construção da autoimagem de
fracassado que Kafka deve ter carregado ao longo de sua vida.
Como o autor lida com registros de
memória, aquilo de que se lembra é certamente revelador, mas não mais revelador
do que aquilo de que se esquece. Nesse caso, o que o leitor obtém através da
carta é uma imagem parcial do pai captada pelo filho intimado e hipersensível.
E uma autoimagem (sempre facciosa) implacável do filho fracassado.
À certa altura do texto, Kafka
atribui ao convívio atritado entre ambos, o resultado dele ter desaprendido a
falar, em contrapartida ao pai que era eloquente e ótimo orador: “Na sua
presença/.../adquiri um modo de falar entrecortado, gaguejante, para você
também isso era demais, finalmente silenciei, a princípio talvez por teimosia,
mais tarde porque já não podia pensar nem falar.” (pág. 22)
O
pai calador
Se é verdade que do ponto de vista
dos conteúdos, a carta trata da opressão do pai que cala o filho, a própria
carta é um texto onde o filho cala o pai. Quem tem o domínio da palavra, do
juízo, da argumentação, das explicações, é o filho que, inclusive, usa do
artifício de selecionar e citar a fala do pai, nos exatos momentos em que elas
servem para corroborar um argumento seu. Desse modo, as falas citadas
atribuídas ao pai (por exemplo: “nenhuma palavra de contestação!” “Sempre do
contra em tudo” “Vou fazer picadinho de você” “Ficávamos felizes quando
tínhamos batatas”, etc) não chegam a instituir um interlocutor no interior da
carta, sendo tragadas pela força da composição de um discurso que ao refletir o
outro, estrategicamente o omite.
Essa situação culmina no final do
texto, aonde Kafka chega a forjar uma resposta do pai à sua carta. “Caso
abarcasse com o olhar minha fundamentação do medo que tenho de você, então você
poderia me responder:” (pág. 68) Neste momento, abrem-se aspas e o filho
escreve um texto implacável contra si mesmo em nome do pai. Quem é o carrasco e
quem é a vítima? O certo é que, no nível da linguagem, o pequeno Davi desfere
um petardo contra o gigante Golias.
A imagem da constelação
estereotipadamente edipiana presente na carta (Kafka conhecia textos de Freud,
seu contemporâneo), quase apropriada demais para ter alguma serventia
interpretativa, leva, no entanto, a pensar, pelo menos como hipótese, que o
verdadeiro destinatário da carta seria a mãe que a leu (e junto com Ottla, irmã
de Kafka, considerou prudente que o filho não a enviasse ao pai), aos olhos de
quem Kafka desautoriza seu rival e projeta uma autoimagem de acuado e desamparado
que perdura até hoje, entre seus biógrafos e leitores. É difícil avaliar quanto
de verdade e quanto de ficção existe nesta trama, já que o sujeito que se
constitui na carta é vulnerável, mas também destemido; comovido, mas também
poderoso.
Judaismo
Outro ponto a se destacar, diz
respeito às queixas de Kafka com referência ao judaísmo que herda do pai.
“Tampouco o judaísmo pôde me salvar
de você. Aqui sem dúvida seria pensável a salvação em si mesma, mas teria sido
ainda mais pensável que ambos tivéssemos nos encontrado no judaísmo, ou mesmo
que nele tivéssemos um ponto de partida comum. Mas que judaísmo foi o que
recebi de você!” (pág.44)
Pelo que se pode depreender a partir
da carta, Hermann Kafka ia à sinagoga nas quatro principais cerimônias
judaicas, jejuava, comemorava a Páscoa com a família e sabia ler o Torá,
portanto, conhecia o hebraico e provavelmente o iídiche, embora fosse falante
fluente do tcheco. Kafka, por sua vez, também sabia ler hebraico (“Aliás, no
templo em que sentia também muito medo, não apenas, como era óbvio, das
inúmeras pessoas com as quais se entrava em contato mais estreito, mas também
porque certa vez você mencionou de passagem que até eu podia ser chamado par
ler o Torá.” (pág.43), fez o Barmitzvá (cerimônia de iniciação do menino na
maioridade) e tinha aulas de judaísmo na escola.
Embora os pais de Kafka não fossem
judeus praticantes num sentido significativo, conservaram um apego tênue, mas
ao mesmo tempo fortemente sentimental às tradições em que foram criados: por outro
lado, esforçavam-se por tornar-se o tipo de judeus “não judaicos”, o que
garantiria sua aceitação plena nas camadas sociais a que aspiravam. Nessas
circunstâncias, a consciência inicial que o pequeno Kafka teve de si mesmo como
judeu estava longe de ser uma descoberta feliz.
Assimilacionismo
Esse apego às tradições judaicas
aliado ao possível desejo de ser apenas um cidadão tcheco deve ter sido
transmitido ao filho que frequentou uma escola germano-judaica (Escola Primária
Nacional e Cívica Alemã) o que representava um outro aspecto da onda
assimilacionista dominante. Se por um lado a vasta maioria dos judeus nunca
chegou a tornar-se alemã foi, não obstante, eficazmente induzida a
desprender-se de seu passado, suas tradições e sua língua. Na Boêmia e na
Morávia, pelo menos, o alemão suplantara inteiramente o iídiche, o que foi, por
si só, uma boa razão para exacerbar ainda mais o antagonismo tcheco contra os
judeus, os quais, na ausência de alternativas viáveis, tenderam cada vez mais a
se identificar política e culturalmente com a minoria alemã, sem que com isso
fossem aceitos por ela em igualdade de condições.
Em 1941, quando as forças de
ocupação alemãs deram início ao recolhimento e deportação dos judeus da
Tchecoslováquia, Elli e Valli, duas das irmãs de Kafka, com seus respectivos
maridos, foram deportados para o gueto de Lodz, onde posteriormente morreram.
Ottla, sua irmã caçula e predileta, casada com um não-judeu (a carta refere-se
aos problemas graves que Ottla teria causado ao pai) e, portanto, como mulher
de um “ariano” ficou isenta das ordens nazistas relativas aos judeus. Isso de
algum modo a afetou, pois ela se divorciou formalmente do marido e, como judia,
foi deportada para o gueto de Terezin, e acabou morrendo em Auschwitz.
Fim
provável
Se Kafka tivesse sobrevivido à
doença, é provável que seu fim tivesse sido semelhante ao das irmãs. Tudo isso
para dizer que é complicado discernir onde se situa a essência do judaísmo.
Para Hermann Kafka, ela estaria talvez na pobreza extrema e na vida na pequena
comunidade aldeã semelhante a um gueto, vivida em sua primeira infância. Para
Kafka estaria talvez na exegese dos textos sagrados. Para ambos não seria
certamente uma fé com que viver, ainda assim ela se revelou aos olhos dos
outros como um sinal distintivo em função do qual se deveria morrer.
Mas o que está em pauta nesse
instigante texto de Kafka não é a veracidade objetiva do relato e do retrato
que traça do pai e sim o estranho poder das emoções ainda cruas que impeliram o
homem de 36 anos a desenrustir seus sofrimentos, refazendo um caminho de vida. Contudo,
a criança amedrontada que continuava a ser brutalizada pelo pai onipotente foi
também um adulto extremamente lúcido, dotado de uma imensa cota de raciocínio,
capaz de transformar seus fantasmas em forma estética. E é assim, me parece
quem a “Carta” deve ser lida. Comparada com os textos propriamente literários
do autor, a “Carta” apresenta o mesmo clima opressivo, o mesmo tom metálico, a
compulsão pelo detalhe, pelo arranjo lógico da frase, sem falar dos temas como
o autoritarismo, a culpa, a perseguição, também aqui presentes. E aí, cabe
ressaltar o trabalho de fôlego que Modesto Carone empreendeu com as traduções
dos textos de Kafka. Trata-se de um trabalho meticuloso, criativo, empenhado em
passar para o português o viés estilístico e a força expressiva do original. O
resultado é o melhor possível. Seu projeto de traduzir a obra completa de
Kafka, com o que o leitor em língua portuguesa só ganhou. Vale a pena conferir.
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