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Sade, o pacificador da carne






Capa da 1ª edição de 1985







Vê no sexo praticado com perversidade a mais autêntica,
porque amoral, manifestação do inconsciente









            Ninguém melhor do que Guy Endore conseguiu sintetizar quem foi Sade: na biografia romanceada que ele escreveu sobre o autor de Cento e Vinte Dias de Sodoma, este é definido como santo diabólico. A razão é simples: Sade mergulhou em cheio na impossibilidade (que afeta todos nós, só que somos hipócritas para admitir que é separar a influência diabólica da divina.) Ela é o enredo da nossa vida. Vilém Flusser chamava de influência divina tudo aquilo que tende para a preservação do mundo no tempo. Nossa consciência é o palco onde essas influências se revezam e se confundem. Sade, deixando-se invadir por elas, não só fotografou o seu tempo em todas as suas misérias morais, como transcendeu-o ao fazer delas a base de uma literatura visceralmente inconformista.
            Morto em 1814 com 77 anos, Donatien-Alphonse-François, o Marquês de Sade, só começou a ser seriamente encarado como um dos mais importantes nomes da literatura francesa no começo do século 20. Quem o descobriu foram – et pour causa – os surrealistas. Em 1909 Apollinaire escreveu a seu respeito um comovente ensaio biográfico. Pierre Klossowski e Jacques Lacan também se debruçaram sobre a vida e a obra invulgares de Sade para falar da experiência trágica do amor.
            Sade deixou uma obra extensa: uma dúzia de romances, cerca de sessenta contos, vinte peças de teatro e um número não conhecido de ensaios diversos. Antecipando-se um século a Freud e a Kraft-Ebing, vê no sexo praticado com perversidade a mais autêntica, porque amoral, manifestação do inconsciente. Decodificá-la é desafio que assusta mas Sade não se intimidou. Abriu sua caixa de Pandora e foi um espectador atento e implacável dos próprios fantasmas.
            O Marido Complacente, título deste livro, é o mesmo de uma das pequenas histórias (cujo tema é repetido em Faça-se como Requerido), vinhetas despojadas de retórica que compõem a primeira parte do livro. A segunda é uma reunião de contos curtos, a maioria de críticas aos costumes, plenos de ironia, como O Presidente Ludibriado e O Corno de Si Mesmo.
            De longe o material aqui reunido não é a melhor coisa que Sade esceveu: Justine, Juliette, Dialogue um Pêtre et um Moribond, La Philosophie dans le Boudoir, eis alguns voos altos desse implacável fuçador de almas, desse homem que conheceu a tenebrosa solidão das prisões e todas as delícias e todos os encantos efêmeros da luxúria, e que se deixou tragar, sem peias, pelo redemoinho de experiências culminantes. Internado na companhia de loucos do asilo de Charenton (onde morreria), Sade trava a última batalha pela pacificação da carne, e envolvido pela noite sem limites da insanidade, monta peças de teatro, talvez para demonstrar que o maçante enredo da normalidade só pode ser pulverizado pela boda mágica entre a ficção e a loucura.




O MARIDO COMPLACENTE
Marquês de Sade
Tradução de Paulo Hecker Filho
Gênero: Contos Eróticos
Coleção L&PM Pocket
L&PM Editores
224 Páginas
1ª Edição: 1985
2ª Edição: 1998
Porto Alegre - Rio Grande do Sul










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