Capa do boletim Soro, número 4, de 1991
Seu projeto estético e temático envolvia
as
questões mais inquietantes
sobre o uso da linguagem como subversão
de visões de
mundo
Sem o álibi da censura e do
fechamento repressivo que a geração 70 experimentou, a literatura das décadas
de 80 e 90, a depender da conjunção dos astros, também tende a se repensar. Por
enquanto, o que é absolutamente legítimo e merecido, experimentam-se as emoções
e as surpresas que as brechas conquistadas da abertura do ex-presidente João
Batista Figueiredo oferece. A história vai sendo revista com o desejo vivo de
avaliar experiências, de discutir essa realidade - que teve lá seus momentos de
prosa e poesia terríveis - do Brasil dos últimos anos.
Um traço parece dominar o panorama
literário do momento: o desenvolvimento e, até mesmo, a inflação do conto. E os
bons trabalhos de Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles, Márcia Denser, Nélida
Pinon, Rubem Fonseca, José J. Veiga explodem como sendo a “nova ficção
brasileira” por excelência. Uma manifestação de denúncia e de protesto, uma
explosão de literatura geradora de poemas espontâneos, mal-acabados, irônicos,
coloquiais, que falam do mundo imediato do próprio poeta, zombam da cultura
oficial, escarnecem a própria literatura.
Dentro de uma faixa restrita, um
grupo de Presidente Prudente jogava para o ar padrões estéticos estabelecidos,
segue o perfil dos escritores transgressores, trata-se de criadores que
adotavam um comportamento desviante. O País estava ingressando num novo período
caracterizado pela modernização acelerada e pela crescente dependência ao
capital monopolista internacional. Convivendo com a modernização econômica, era
estimulado o ressurgimento ideológico de valores arcaicos da direita que
assumira o poder.
A marginalidade é tomada não como
saída alternativa, mas, sim, como ameaça ao sistema, como possibilidade de
agressão e transgressão. A contestação é assumida conscientemente. O uso de
tóxico e a bissexualidade, o comportamento exótico são vividos e sentidos como
gestos perigosos, ilegais e, portanto, assumidos como mostram os livros
“Morangos Mofados”, “Triângulo das Águas” e o romance “Onde Andará Dulce
Veiga”, de Caio Fernando Abreu, e “Tanto
Faz”, de Reinaldo Moraes. Na poesia, “20 Poemas com Brócoli” e “Quizumba”, de
Roberto Piva, “Jornal Dobrabil”, de Glauco Mattoso e “Uivo e Outros Poemas”, de
Allen Ginsberg, traduzido por Claudio Willer, ambos de São Paulo.
Da pizzaria Tia Eva, na Avenida
Coronel Marcondes, próxima a um clube social, o grafiteiro norte-americano John
Howard cita frases de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll
entrecortadas pelos refrãos da música “Another Brick in The Wall”, do grupo
inglês Pink Floyd, com escala nos bares Avelino, na Rua Manoel Goulart, pois no
inverno intenso de julho, o Marrom, o proprietário, fervia uma garrafa de vinho
doce. Às vezes, na sexta-feira, o pessoal se encontrava do bar da UNESP local
em meio aos manifestos, declamações, depoimentos regados às altas doses de
caipirinha, vodka, conhaque e cerveja, no Toca da Raposa, na rua Djalma Dutra, do
Manuh Merselian e, também, no Clube da Esquina, sob a direção do Gilmar, na Avenida
Washington Luiz, esquina com a Rua Mário Simões de Souza, onde promovia
apresentações de instrumentistas, a exemplo de Mitio e Gutão Crepaldi, grupos
musicais e cantores desconhecidos.
Jorge da Capadócia, professor de
inglês, e Joaquim, o engenheiro civil, promovem a feira de livros nas escadas
do extinto Cine Presidente, na Avenida Coronel José Soares Marcondes, em frente
ao antigo bar Cinelândia. Os pedidos encomendados eram entregues no bar do
Avelino: - “Desde que houvesse a consumação no estabelecimento!” - dizia o
Marrom, dono do local e antigo garçon do bar Cruzeiro do Sul, no período de
1954 a 1966, famoso ponto de encontro de políticos, radialistas, jornalistas e
comerciantes, na rua Joaquim Nabuco, esquina com a Tenente Nicolau Maffei, no centro
de Presidente Prudente.
Por todo o País, vê-se a formação
progressiva de grupos ligados aos movimentos de organizações de base da
periferia, da frente de libertação do negro, da defesa da ecologia e a
estruturação do movimento sindical nos principais estados da nação. Na
administração Virgílio Tiezzi, cria-se o excelente projeto cultural “Corre
Bairro”, de Hilton Nogueira (Tinho), da Secretaria da Cultura, ator, diretor de
teatro, que começou a trabalhar em 1958, aqui na cidade e, testemunha ocular dos
anos de chumbo do regime ditatorial, e Milton Saito, geógrafo e jornalista,
atualmente residindo no Japão.
A trip dos boletins e fanzines
alternativos, que canalizou a fatia mais perturbadora da poesia brasileira
produzida nos anos 80 e 90, ganhava mais uma adesão. Trata-se de Soro, editado em Presidente Prudente
por Rubens Shirassu Júnior e o professor Valter Rogério Nogueira de Almeida e membros
da Casa do Poeta. Seu projeto estético e temático envolvia as questões mais
inquietantes sobre o uso da linguagem como subversão de visões de mundo. Era um
alternativo incomum, um OVNI de papel para leitores de beira-de-piscina, que
certamente o achavam “chato” (este adjetivo, aliás, é o máximo de “crítica”
alcançada por essas cabecinhas condicionadas pelos instantâneos da TV).
Soro,
uma pequena obra-prima do que chamamos “jornal de autor”. Mostrava-se
insubmisso à tirania do novidadeirismo dos suplementos de “estilo”, aqueles que
capricham na embalagem para melhor empacotar o alienado e lhe definir o que
pensar, ouvir, ler, assistir e vestir. Não havia novidades nas páginas de Soro. Buscava-se o novo, sempre atual.
Seu ideário temático seguia a visada sincrônica formulada por Roman Jakobson,
divulgada por Ezra Pound e trivializada pelos irmãos Augusto e Haroldo de
Campos. Seu terceiro número trazia falhas no projeto gráfico, mas se revelava
uma imprevisível caixa de surpresas. As páginas não estavam condenadas a meros
suportes dos textos, mas se apresentavam como elementos estruturais dentro do
jornal.
A plasticidade oferecia uma leitura
descontraída. Havia uma descontinuidade na ordenação gráfica e visual das
páginas. É como se estas, antes de se agregarem no boletim, fossem signos
soltos e pintados, como grafites pichados nos muros da cidade. O efeito é sutil,
o que acaba coincidindo com as referências xamânicas que perpassam todo o
fanzine.
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