De óculos de aros negros e pesados: uma forma de protesto
contra o padrão estético vigente nas sociedades de consumo
Maior escândalo veio com “Teorema”
Efemérides
são pretextos. No caso dos 45 anos da morte de Pier Paolo Pasolini, ocasião
para se reabrir um caso insuficientemente explicado, o “delito italiano” consumado
numa noite de novembro de 1975 na feia Praia de Óstia. Pretexto também para
reavaliação crítica de uma obra que a morte prematura torna artificialmente
“completa”. Foram 12 longas-metragens, mais três episódios em filmes coletivos,
e os roteiros escritos para outros diretores.
Primeiro os roteiros. Pasolini
colaborou em A Mulher do Rio, de
Giovanni Soldati, Noites de Cabíria,
de Federico Fellini, A Noite do Massacre,
de Florestano Vancini, Morte de um Amigo,
de Francisco Rosi. Não foi creditado por Cabíria.
Seu trabalho mais importante foi com Mauro Bolognini, com quem fez O Belo Antônio, Os Namoros de Marisa, Um Dia
de Enlouquecer e A Grande Noite de Loucuras. Este
último, em especial, mostra a maestria do escritor para cinema. A história é de
pequenos gatunos que descolam grana para passar uma noite em grande estilo. O
detalhe genial do texto é o final, quando o protagonista deixa a companheira em
casa, numa periferia de Roma, paga o táxi e joga fora a última nota do dinheiro
que sobrara, antes de voltar a pé para o seu casebre. Há no gesto o fascínio
pelo lumpesinato ou lumpemproletariado, termo de origem alemã, pela marginália
mesmo, o desprezo pelo consumo e o aburguesiamento da Itália.
O roteirista continua no cineasta.
Seus dois primeiros filmes, Accatone
e Mamma Roma (1961 e 1962) foram
saudados na Itália como renascimento do neorrealismo. Havia, de fato, nestes
dois primeiros filmes, todos os ingredientes da escola que consagrou Vittorio De
Sica, Roberto Rosselini e Lucchino Visconti. A preocupação com a denúncia, a
narrativa crua e de cunho social, atores não-profissionais no elenco. E, até
mesmo, a presença da grande dama do neorrealismo, Anna Magnani, fazendo a
comovente Mamma Roma, prostituta cuja
única aspiração de vida era colocar o filho no caminho do bem. Accatone era o marginal, sustentado
pela mulher, e foi o primeiro vislumbre do cineasta Pasolini sobre o que significa viver fora da lei na sociedade
italiana do pós-guerra. Esses dois filmes mostravam um cinema claramente
social.
Depois veio o provocativo La Riccota, episódio de Rogopag (sigla
para Rosselini, Godart, Pasolini e Gregoretti), que irritou profundamente o
Vaticano. A ponto de o cineasta ser processado por acusação de “blasfêmia
contra a religião do Estado”. Foi condenado a quatro meses de prisão, com
sursis. O filme mostrava um pobre-diabo que vai fazer o papel de Cristo numa
montagem da Paixão, come demais e morre de indigestão na cruz. La Riccota provocou um escândalo na
Itália ao denunciar a pseudorreligiosidade de gente que explora a fé popular
com fins lucrativos.
Curiosamente, o filme seguinte de
Pasolini A Paixão Segundo São Mateus
(1964) valeu-lhe o prêmio Ocic (Office Catholique du Cinéma ) e foi elogiado
pelo próprio Osservatore Romano. Alguns
o consideram o melhor filme já feito sobre a vida de Cristo. O filme não
coincidia exatamente com o tipo de cristianismo professado pela Igreja, embora
recebesse o apoio de católicos progressistas. Pasolini disse que sua ideia não
era desmistificar a figura de Jesus, mas ao contrário, devolver à história de
Cristo seu aspecto místico. Era a preocupação com a restituição do sagrado num
mundo laicizado que, paralelamente ao interesse político, iria ocupá-lo na
carreira.
Os dois
filmes seguintes são testemunhos da presença desses polos de tensão orientando
o processo de criação. Gaviões e
Passarinhos (1965) é uma parábola em que Totó e Nineto Davoli (pai
e filho na história) percorrem os caminhos da fé, depois da política, e acabam
devorando o corvo marxista (e falante) que os acompanhava. Um filme que teve a
virtude de irritar tanto o clero como o Partido Comunista Italiano (PCI). Assim
era Pasolini: um cristão que desagradava à igreja, um marxista que
escandalizava o partido.
Mas
escândalo veio mesmo com Teorema
(1969), filme criador de grande polêmica cultural na Itália e fora dela. Nele,
o contato com o sagrado se fez pelo sexo. O misterioso visitante (Terence Stamp) entra no circuito de uma
família burguesa e faz sexo com cada uma das pessoas da casa. Modifica os
destinos de todas elas e a família se desintegra. Se algum filme tivesse de ser
escolhido para representar toda a obra de Pasolini,
seria Teorema. Neste estão
expressos o desprezo pela burguesia, pelas convenções familiares e sexuais.
Nele está também a nostalgia pelo sagrado, dom perdido no mundo das coisas, e a
aspiração de retorno mítico a uma situação não alienada, que tem como
pressuposto a destruição dos valores da sociedade industrializada e burguesa.
Razão
e desrazão
Houve também a insistência no mundo
mítico, com as grandes tragédias gregas, Édipo
Rei, de Sófocles e Medéia, de
Eurípedes (1967 e 1971), testemunhas do interesse em recuperar esse tempo
mítico, ainda não corrompido pelo racionalismo industrial. O cosmos do mito,
aqui, remontado às suas fontes gregas, é aquele em que razão e desrazão
encontram lugar e abrigo. Pasolini achava
que o homem moderno havia perdido a capacidade de integração dessas duas partes
de sua natureza. É também o lado freudiano deste cultor dos mitos.
Esse caráter regenerador de algo
perdido pode ser detectado também na sua “trilogia da vida” – Decameron (1972), Os Contos de Canterbury (1973) e As Mil e Uma Noites (1974), com os contos erótico-populares da
Itália, Inglaterra e Arábia. Pelo que declara Pasolini, até a trilogia sua preocupação tinha sido basicamente
ideológica. Agora passara a ontológica. E essa nova dialética do ser passava
pelo prazer do corpo. Uma regra fundamental, nas três histórias – na verdade,
três capítulos de um único filme – era a autenticidade dos sentimentos e dos
sentidos. Sufocar os sentimentos equivalia a sufocar a própria existência,
dizia Pasolini. Uma declaração de
amor à vida, que seria depois “abjurada” (mas não renegada) por ele.
No entanto, o filme seguinte, e seu
último, Salô, ou os 120 Dias de Sodoma,
foi um terrível estudo da morte baseado em Sade,
mas se referindo diretamente ao fascismo italiano. A história se passa no final
da Segunda Guerra, na pequena cidade de Salô,
último refúgio do fascismo. Uma obra trágica, deliberadamente repugnante, desagradável
aos sentidos. Nesse seu testamento sombrio, Pasolini
parece dizer que o fascismo afinal não havia morrido com o final da guerra.
Frustrado em seu desejo da aquisição, o lumpesinato partia para a violência
cega. Pasolini sabia com quem estava
lidando. E, claro, Salô foi uma
espécie de premonição.
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